GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO - GMT-
AYAHUASCA
RELATÓRIO FINAL
I - Introdução
1.
O CONAD é o órgão normativo do Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas – SISNAD – e suas decisões “deverão ser cumpridas pelos
órgãos e entidades da Administração Pública integrantes do Sistema” (arts. 3o,
I, 4o, 4o, II e 7o, do Decreto no
3.696, de 21/12/2000). Assim, no exercício de sua competência legal aprovou
parecer da CATC que, por sua vez, adotou pareceres do colegiado que o precedeu
– o CONFEN – e abordou outros aspectos pertinentes ao tema “o uso religioso da
ayahuasca” cumprindo destacar a observação final e as conclusões do parecer que
o CONAD aprovou: “que fique registrado em ata, para fins, inclusive de
utilização pelos interessados, que não pode haver restrição, direta ou
indireta, às práticas religiosas das comunidades, baseada em proibição do uso
ritual da Ayahuasca”.
2.
O referido parecer concluiu: “a) a câmara ratifica as
decisões anteriores do colegiado, com os aditamentos do presente parecer,
conforme referido no ponto no 4; b) recomenda-se a consolidação, em
separata, de todas as decisões supracitadas, para acesso e utilização dos
interessados; c) a liberdade religiosa e o poder familiar devem servir à paz
social, à qual se submete a autonomia individual; d) deve ser reiterada a
liberdade do uso religioso da Ayahuasca, tendo em vista os fundamentos
constantes das decisões do colegiado, em sua composição antiga e atual,
considerando a inviolabilidade de consciência e de crença e a garantia de proteção
do Estado às manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, com base nos arts. 5o, VI e 215, § 1o
da Constituição do Brasil, evitada, assim, qualquer forma de manifestação de
preconceito”.
3.
A Resolução nº 05 – CONAD, de 10 de novembro de 2004, tem
por objetivo contribuir para a plena implementação do que foi discutido e
aprovado ”sobre o uso religioso da Ayahuasca”, e para tanto foi constituído o
GMT que, assim, terá por premissas as questões decididas pelo CONAD, para
laborar, com ampla liberdade, no “estudo do que é preciso fazer”, ou seja, na
formulação de documento que “traduza a deontologia do uso da Ayahuasca”.
4.
O Grupo Multidisciplinar de Trabalho, instituído pela
Resolução nº. 5 CONAD, de 04 de novembro de 2004, para levantamento e
acompanhamento do uso religioso da Ayahuasca, bem como para a pesquisa de sua
utilização terapêutica, em caráter experimental, foi oficialmente instalado
pelo Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da
República e Presidente do Conselho Nacional Antidrogas, JORGE ARMANDO FELIX, em
30 de maio de 2006, no Palácio do Planalto, em Brasília-DF, e teve como
objetivo final a elaboração de documento que traduzisse a deontologia do uso da
Ayahuasca, como forma de prevenir seu uso inadequado.
5.
AYAHUASCA, aqui, é referida de modo genérico, para manter a
uniformidade do texto e a harmonia com a nomenclatura utilizada nos atos
oficiais do CONAD, mas é conhecida por diversos outros nomes, conforme a
comunidade que o usa no Brasil ou no Exterior, destacando-se as expressões mais
conhecidas “HOASCA”, “SANTO DAIME” e “VEGETAL”, compostos, indistintamente,
pelo cipó Banisteriopsis caapi (jagube,
mariri etc) e pela folha Psychotria viridis (chacrona, rainha
etc.).
6.
Nos
termos da referida Resolução, o GMT foi composto por seis estudiosos[1],
indicados pelo CONAD, das áreas que atenderam, dentre outros, os seguintes
aspectos: antropológico (representado pelo Dr. Edward John Baptista das
Neves MacRae), farmacológico/bioquímico (Dr. Isac Germano Karniol), social (Drª
Roberta Salazar Uchoa), psiquiátrico (Dr. Dartiu Xavier da Silveira Filho) e
jurídico (Drª Ester Kosovski) e seis membros, convidados pelo CONAD,
representantes dos grupos religiosos que fazem uso da Ayahuasca, eleitos
em Seminário realizado
7.
O GMT contou com o apoio da Secretaria Nacional Antidrogas,
representada pela Diretora de Políticas de Prevenção e Tratamento, Drª Paulina
do Carmo Arruda Vieira Duarte, e da Assessoria Executiva do CONAD, representada
pelas Sras. Déborah de Oliveira Cruz e Maria de Lourdes Carvalho. Em suas
reuniões ordinárias contou com o apoio do Dr. Domingos Bernardo
Gialluisi da Silva Sá, Jurista, Membro Titular do CONAD e da Câmara de
Assessoramento Técnico Científico, também representada pelo Dr. Marcelo de Araújo
Campos e pela Drª Maria de Lourdes Zenel.
8.
Além da primeira reunião em que os membros do GMT foram
empossados, foram realizadas mais seis reuniões de trabalho na Sala de Reuniões
da Secretaria Nacional Antidrogas, nos dias 28/06,
28/07, 28/08, 23 e 24/10 e 23/11, todas registradas em atas, durante as quais
se discutiu a seguinte pauta: cadastramento das entidades; aspectos jurídicos e
legais para regulamentação do uso religioso e amparo do direito à liberdade de
culto; regulação de preceitos para produção, uso, envio e transporte da
Ayahuasca; procedimentos de recepção de novos interessados na prática
religiosa; definição de uso terapêutico e outras questões científicas;
Ayahuasca, cultura e sociedade; e, sistematização do trabalho para elaboração
do documento final.
9.
O objetivo final do GMT, nos termos da Resolução nº 05/04,
do CONAD, é identificar “o que é preciso fazer” para atender aos
diversos itens que integram os direitos e obrigações pertinentes ao “uso
religioso da Ayahuasca”. O “estudo” desse “o que é preciso fazer”
constituiu-se, exatamente, nas atividades desenvolvidas pelo GMT, traduzindo,
assim, a “deontologia do uso da Ayahuasca”: (deon, do grego: “o
que é preciso fazer” + logos, também do grego: “estudo” ).
II
- Histórico da regulamentação do uso da Ayahuasca
10.
A
instituição do Grupo Multidisciplinar de Trabalho expressa dever constitucional
do Estado Brasileiro de proteger as manifestações populares e indígenas e
garantir o direito de liberdade religiosa. Representa o coroamento do processo
de legitimação do uso religioso da Ayahuasca no país, iniciado há mais de vinte
anos, com a criação do 1º Grupo de Trabalho do CONAD (na época
CONFEN), designado para examinar a conveniência da suspensão
provisória da inclusão da substância Banisteriopsis
caapi na Portaria nº 02/85, da DIMED (Resolução nº. 04/85, do CONFEN).
11.
Este
primeiro estudo, após dois anos, com a realização de várias pesquisas e visitas
às comunidades usuárias
12.
Esta
conclusão foi aprovada pelo plenário do antigo Conselho Federal de
Entorpecentes, em reunião de setembro de 1987, de sorte que a suspensão
provisória da interdição do uso da Ayahuasca, levada a termo pela Resolução nº
06, do CONFEN, de 04 de fevereiro de 1986, tornou-se definitiva, com a exclusão
da bebida e das espécies vegetais que a compõem das listas da DIMED.
13.
A
despeito disso, em 1991, em face de denúncia anônima, por iniciativa do então
Conselheiro do CONFEN, Paulo Gustavo de Magalhães Pinto, Chefe da Divisão de
Repressão a Entorpecentes do Departamento de Polícia Federal, a “questão do uso
da Ayahuasca” foi reexaminada.
14.
Disso
resultou mais uma vez, por parte do CONFEN, a realização de estudos acerca do
contexto de produção e do consumo da bebida, desenvolvidos pelo Doutor Domingos
Bernardo Gialluisi da Silva Sá, o qual, em parecer conclusivo de 02/06/92,
aprovado por unanimidade na 5ª Reunião Ordinária do CONFEN realizada na mesma
data, considerou que não havia razões para alterar a conclusão proposta em
1987, no relatório final já mencionado[3].
15.
Dez
anos depois, em face de denúncias de uso inadequado da bebida Ayahuasca, a
maior parte divulgada na imprensa e outras tantas dirigidas aos órgãos do Poder
Público, notadamente CONAD, Polícia Federal e Ministério Público, fato que está
amplamente documentado na consolidação das decisões e estudos do CONAD e de
outras instituições acerca do uso da Ayahuasca, novo Grupo de Trabalho foi
definido pela Resolução nº 26, de 31 de dezembro de 2002.
16.
De
acordo com esta resolução, o GT deveria ser composto por diversas instituições[4],
com base no princípio da responsabilidade compartilhada, agora com o objetivo
de fixar normas e procedimentos que preservassem a manifestação cultural
religiosa, observando os objetivos e normas estabelecidas pela Política
Nacional Antidrogas e pelos diplomas legais pertinentes. Não há registro de que
este grupo tenha sido constituído.
17.
Em 24
de março de 2004 o CONAD solicitou à Câmara de Assessoramento Técnico
Científico a elaboração de estudo e parecer técnico-científico a respeito de
diversos aspectos do uso da Ayahuasca, ocasião em que o referido órgão de
assessoramento do CONAD emitiu parecer apresentado e aprovado na Reunião do
CONAD de 17/08/04, o qual serviu de fundamento à Resolução nº 5, do CONAD, de
04/11/04, que institui o atual Grupo Multidisciplinar de Trabalho.
III
- Andamento das Reuniões
18.
A fim
de atender aos termos da resolução que o instituiu, o GMT teve como primeira
tarefa, depois de eleger o Presidente e o Vice-Presidente do Grupo,
respectivamente Dr. Dartiu Xavier da Silveira Filho e Edson Lodi Campos Soares,
a elaboração do Cadastro Nacional das Entidades Usuárias da Ayahuasca - CNEA.
19.
Acerca
desse tema, muitos foram os questionamentos levados em consideração pelo grupo,
a começar pela finalidade do referido cadastro, que não deve servir de
mecanismo de controle estatal sobre o direito constitucional à liberdade de
crença (art. 5º, VI, CF). Discutiu-se também acerca de sua objetividade, de
sorte que não constassem exigências que viessem a invadir o direito individual
à intimidade, vida privada e imagem dos usuários (art. 5º, X, CF). Nesse
sentido, chegou-se ao consenso de que responder ou não ao cadastro seria uma
faculdade das entidades.
20.
Fixados
esses parâmetros, o formulário de cadastro foi colocado à disposição dos
interessados, acompanhado de carta explicativa e cópia da Resolução nº. 05/04,
do CONAD. Até a presente data foi cadastrada quase uma centena de entidades,
dando também uma dimensão parcial das diversas práticas que são adotadas pelas
entidades que fazem uso da Ayahuasca no Brasil. O cadastro continua disponível
às entidades interessadas.
21.
O GMT procurou destacar e consolidar as práticas
que para as próprias entidades representam o uso religioso adequado e
responsável, anteriormente estabelecidos na “Carta de Princípios”, resultado do
1º Seminário das entidades da Ayahuasca, realizado
IV
– Temas Discutidos
IV.I
– Uso Religioso da Ayahuasca
22. Ao longo de décadas o uso ritualístico da Ayahuasca – bebida extraída da decocção do cipó Banisteriopsis caapi (jagube, mariri etc.) e da folha Psychotria viridis (chacrona, rainha etc.) – tem sido reconhecido pela sociedade brasileira como prática religiosa legítima, de sorte que são mais do que atuais as conclusões de relatórios e pareceres decorrentes de estudos multidisciplinares determinados pelo antigo CONFEN, desde 1985, que constatavam que “há muitas décadas o uso da Ayahuasca vem sendo feito, sem que tenha redundado em qualquer prejuízo social conhecido”[5].
23. A correta identificação do que é uso religioso, segundo os conceitos e práticas ditadas, a partir das próprias entidades que fazem uso da Ayahuasca, permitirá assegurar a proteção da liberdade de crença prevista na Constituição Federal. Considerando a ocorrência de registros de uso não religioso da Ayahuasca, sua identificação possibilitará prevenir práticas que não se amoldam à proteção constitucional.
24.
Trata-se, pois, de ratificar a legitimidade
do uso religioso da Ayahuasca como rica e ancestral manifestação cultural que,
exatamente pela relevância de seu valor histórico, antropológico e social, é
credora da proteção do Estado, nos termos do art. 2o, “caput”, da
Lei 11.343/06[6] e do
art. 215, §1º, da CF. Devem-se evitar práticas que possam pôr em risco a
legitimidade do uso religioso tradicionalmente reconhecido e protegido pelo
Estado brasileiro, incluindo-se aí o uso da Ayahuasca associado a substâncias
psicoativas ilícitas ou fora do ambiente ritualístico.
IV.II – Comercialização
25. O GMT reconhece o caráter religioso de todos os atos que envolvem a Ayahuasca, desde a coleta das plantas e seu preparo, até seu armazenamento e ministração, de modo que seu praticante de tudo participa com a convicção de que pratica ato de fé e não de comércio. Daí decorre que o plantio, o preparo e a ministração com o fim de auferir lucro é incompatível com o uso religioso que as entidades reconhecem como legítimo e responsável.
26. Quem vende Ayahuasca não pratica ato de fé, mas de comércio, o que contradiz e avilta a legitimidade do uso tradicional consagrado pelas entidades religiosas.
27. A vedação da comercialização da Ayahuasca não se confunde com seu custeio, com pagamento das despesas que envolvem a coleta das plantas, seu transporte e o preparo. Tais custos de manutenção, conforme seja o seu modo de organização estatutária, são suportados pela comunidade usuária. E é evidente, também, que a produção da Ayahuasca tem um custo, que pode variar de acordo com a região que a produz, a quantidade de adeptos, a maior ou menor facilidade com que se adquire a matéria prima (cipó e folha), se se trata de plantio da própria entidade ou se as plantas são obtidas na floresta nativa, e tantas outras variáveis.
28. Historicamente, porém, de acordo com a experiência das entidades religiosas chamadas a compor o Grupo Multidisciplinar de Trabalho, esse custo é partilhado no seio da instituição por meio das contribuições dos membros de cada entidade. Os sócios respondem pelas despesas de manutenção da organização religiosa, nas quais estão incluídos os gastos com a produção da Ayahuasca, com prestação de contas regular.
29.
O uso religioso responsável na produção da
Ayahuasca é delineado a partir da constatação das práticas das entidades: a)
cultivar as plantas e preparar a Ayahuasca, em princípio, para seu próprio
consumo; b) buscar a sustentabilidade na produção das espécies; e, c) quando
não possuir cultivo próprio e nenhuma forma de obtenção da matéria prima na
floresta nativa – sem prejuízo de buscar a auto-suficiência em prazo razoável –
nada obsta obter o chá mediante custeio das despesas tão somente, evitando-se
que pessoas, grupos ou entidades se dediquem, com exclusividade ou majoritariamente,
ao fornecimento a terceiros.
IV.III
– Sustentabilidade da Produção da Ayahuasca
30. A cultura do uso religioso da Ayahuasca, por se tratar de fé baseada em bebida extraída de plantas nativas da Floresta Amazônica, pressupõe responsabilidade ambiental na extração das espécies. As entidades religiosas devem buscar a auto-sustentabilidade na produção da bebida, cultivando o seu próprio plantio.
31.
Turismo, como atividade comercial, deve ser
evitado pelas entidades, que por se constituírem em instituições religiosas,
não devem se orientar pela obtenção de lucro, principalmente decorrente da
exploração dos efeitos da bebida.
32.
A Constituição Federal garante o livre exercício
dos cultos religiosos, que tem como conseqüência o direito à propagação da fé
através do intercâmbio legitimo de seus membros. Neste sentido todos têm
direito de professar a sua fé livremente e de promover eventos dentro dos
limites legais estabelecidos. O que se
quer evitar é que uma prática religiosa responsável, séria, legitimamente
reconhecida pelo Estado, venha a se transformar, por força do uso
descomprometido com princípios éticos, em mercantilismo de substância
psicoativa, enriquecendo pessoas ou grupos, que encontram no argumento da fé
apenas o escudo para práticas inadequadas.
33. A publicidade da Ayahuasca também tem sido motivo de deturpações e abusos, notadamente na Internet. Observa-se, principalmente neste meio de comunicação, o oferecimento de toda espécie de cursos e oficinas remuneradas, cujo elemento central é o uso da Ayahuasca associado a promessas de experiências transformadoras descomprometidas com o ritual religioso.
34. A partir das experiências das entidades e de suas práticas rituais, verifica-se que o uso ritual responsável é incompatível com a publicidade e a oferta de promessas de curas milagrosas, de transformações pessoais arrebatadoras e com a indução das pessoas a acreditarem que a Ayahuasca é o remédio para todos os males. É consenso no GMT que quem faz uso religioso responsável não divulga informações que possam induzir as pessoas a terem uma imagem fantasiosa da Ayahuasca e trata do tema com discrição, sem fazer alardes dos efeitos da substância.
35. Para fins deste relatório “terapia” é compreendida como atividade ou processo destinado à cura, manutenção ou desenvolvimento da saúde, que leve em conta princípios éticos científicos.
36. Tradicionalmente, algumas linhas possuem trabalhos de cura em que se faz uso da Ayahuasca, inseridos dentro do contexto da fé. O uso terapêutico que tradicionalmente se atribui à Ayahuasca dentro dos rituais religiosos não é terapia no sentido acima definido, constitui-se em ato de fé e, assim sendo, ao Estado não cabe intervir na conduta de pessoas, grupos ou entidades que fazem esse uso da bebida, em contexto estritamente religioso. Em outra condição se encontram aqueles que se utilizam da bebida fora do contexto religioso. Isto nada tem que ver com uso religioso, e tal prática não está reconhecida como legítima pelo CONAD, que se limitou a autorizar o uso da substância em rituais religiosos.
37. A utilização terapêutica da Ayahuasca em atividade privativa de profissão regulamentada por lei dependerá da habilitação profissional e respaldo em pesquisas científicas, pois de outra forma haverá exercício ilegal de profissão ou prática profissional temerária.
38. Qualquer prática que implique utilização de Ayahuasca com fins estritamente terapêuticos, quer seja da substância exclusivamente, quer seja de sua associação com outras substâncias ou práticas terapêuticas, deve ser vedada, até que se comprove sua eficiência por meio de pesquisas científicas realizadas por centros de pesquisa vinculados a instituições acadêmicas, obedecendo às metodologias científicas. Desse modo, o reconhecimento da legitimidade do uso terapêutico da Ayahuasca somente se dará após a conclusão de pesquisas que a comprovem.
39. Com fundamento nos relatos dos representantes das entidades usuárias, verificou-se que as curas e soluções de problemas pessoais devem ser compreendidas no mesmo contexto religioso das demais religiões: enquanto atos de fé, sem relação necessária de causa e efeito entre uso da Ayahuasca e cura ou soluções de problemas.
40. O crescimento do uso da Ayahuasca e a facilidade com que se pode comprar a bebida de pessoas que a produzem sem compromisso com a fé têm levado ao surgimento de novas entidades, que não possuem experiência no lidar com a bebida e seus efeitos, assim como fazem mau uso da Ayahuasca, associando-a a práticas que nada têm a ver com religião. O uso ritual caracterizado pela busca de uma identidade religiosa se diferencia do uso meramente recreativo.
41. O uso religioso responsável da Ayahuasca pressupõe a presença de pessoas experientes, que saibam lidar com os diversos aspectos que envolvem essa prática, a saber: capacidade de identificar as espécies vegetais e de preparar a bebida, reconhecer o momento adequado de servi-la, discernir as pessoas a quem não se recomenda o uso, além de todos os aspectos ligados ao uso ritualístico, conforme sua orientação espiritual.
42. Embora se reconheça o ato de fé solitário e isolado, usualmente a prática religiosa se desenvolve coletivamente. É recomendável que os grupos constituam-se em organizações formais, com personalidade jurídica, consolidando a idéia de responsabilidade, identidade e projeção social, que possibilite aos usuários a prática religiosa em ambiente de confiança.
43. Além dos princípios inerentes a cada uma das linhas doutrinárias na recepção de novos membros, é razoável e prudente que ao se ministrar a Ayahuasca seja levado em conta o relato de alterações mentais anteriores, o estado emocional no momento do uso e que eles não estejam sob efeito de álcool ou outras substâncias psicoativas.
44. Antes de ingerir pela primeira vez, o interessado deve ser informado acerca de todas as condições que se exigem para o uso da Ayahuasca, conforme a orientação de cada entidade. Uma entrevista prévia, oral ou escrita, deve ser realizada no sentido de averiguar as condições do interessado e a ele devem ser dados os esclarecimentos necessários acerca dos efeitos naturais da bebida.
45. É recomendável que cada entidade acompanhe os participantes até a finalização de seus rituais, excetuada a saída previamente solicitada em casos excepcionais e com a anuência do responsável.
IV.VIII
– Uso da Ayahuasca por Menores e Grávidas
46. Tendo em vista a inexistência de suficientes evidências cientificas e levando em conta a utilização secular da Ayahuasca, que não demonstrou efeitos danosos à saúde, e os termos da Resolução nº 05/04, do CONAD, o uso da Ayahuasca por menores de 18 (dezoito) anos deve permanecer como objeto de deliberação dos pais ou responsáveis, no adequado exercício do poder familiar (art. 1634 do CC); e quanto às grávidas, cabe a elas a responsabilidade pela medida de tal participação, atendendo, permanentemente, a preservação do desenvolvimento e da estruturação da personalidade do menor e do nascituro.
V - Conclusão:
a. Considerando que o CONAD, acolhendo parecer da Câmara
de Assessoramento Técnico Científico, reconheceu a legitimidade do uso
religioso da Ayahuasca, nos termos da Resolução nº 05/04, que instituiu o GMT
para elaborar documento que traduzisse
a deontologia do uso da Ayahuasca, como forma de prevenir seu uso inadequado;
b. Considerando que o GMT, após diversas discussões e análises, onde prevaleceu o
confronto e o pluralismo de idéias, considerou como uso inadequado da Ayahuasca
a prática do comércio, a exploração turística da bebida, o uso associado a
substâncias psicoativas ilícitas, o uso fora de rituais religiosos, a atividade
terapêutica privativa de profissão regulamentada por lei sem respaldo de
pesquisas cientificas, o curandeirismo, a propaganda, e outras práticas que
possam colocar em risco a saúde física e mental dos indivíduos;
c.
Considerando
que a dignidade da pessoa humana é princípio fundante da República Federativa
do Brasil, e dentre os direitos e garantias dos cidadãos sobressai-se a
liberdade de consciência e de crença como direitos invioláveis, cabendo ao
Estado, na forma da lei, garantir a proteção aos locais de culto e a suas
liturgias (CF, arts. 1º, III, 5º, VI);
d.
Considerando a decisão do INCB (International Narcotics Control
Board), da Organização das Nações Unidas, relativa à Ayahuasca, que afirma não
ser esta bebida nem as espécies vegetais
que a compõem objeto de controle internacional;
e.
Considerando,
por fim, que o uso ritualístico religioso da Ayahuasca, há muito reconhecido
como prática legitima, constitui-se manifestação cultural indissociável da
identidade das populações tradicionais da Amazônia e de parte da população
urbana do País, cabendo ao Estado não só garantir o pleno exercício desse
direito à manifestação cultural, mas também protegê-la por quaisquer meios de
acautelamento e prevenção, nos termos do art. 2o, “caput”, Lei
11.343/06 e art. 215, caput e § 1º
c/c art. 216, caput e §§ 1º e 4º da
Constituição Federal.
O Grupo Multidisciplinar de Trabalho aprovou os
seguintes princípios deontológicos para o uso religioso da Ayahuasca:
1.
O chá Ayahuasca é o produto da decocção do cipó Banisteriopsis caapi e da folha Psychotria
viridis e seu uso é restrito a rituais religiosos, em locais autorizados
pelas respectivas direções das entidades usuárias, vedado o seu uso associado a
substâncias psicoativas ilícitas;
2.
Todo o processo de produção, armazenamento, distribuição e
consumo da Ayahuasca integra o uso religioso da bebida, sendo vedada a
comercialização e ou a percepção de qualquer vantagem, em espécie ou in natura, a título de pagamento, quer
seja pela produção, quer seja pelo consumo, ressalvando-se as contribuições
destinadas à manutenção e ao regular funcionamento de cada entidade, de acordo
com sua tradição ou disposições estatutárias;
3.
O uso
responsável da Ayahuasca pressupõe que a extração das espécies vegetais
sagradas integre o ritual religioso. Cada entidade constituída deverá buscar a
auto-sustentabilidade em prazo razoável, desenvolvendo seu próprio cultivo,
capaz de atender suas necessidades e evitar a depredação das espécies
florestais nativas. A extração das espécies vegetais da floresta nativa deverá
observar as normas ambientais;
4.
As entidades
devem evitar o oferecimento de pacotes turísticos associados à propaganda dos
efeitos da Ayahuasca, ressalvando os intercâmbios legítimos dos membros das
entidades religiosas com suas comunidades de referência;
5.
Ressalvado o
direito constitucional à informação, recomenda-se que as entidades evitem a
propaganda da Ayahuasca, devendo em suas manifestações públicas orientar-se
sempre pela discrição e moderação no uso e na difusão de suas propriedades;
6.
A prática do
curandeirismo é proibida pela legislação brasileira. As propriedades curativas
e medicinais da Ayahuasca – que as entidades conhecem e atestam – requerem uso
responsável e devem ser compreendidas do ponto de vista espiritual, evitando-se
toda e qualquer propaganda que possa induzir a opinião pública e as autoridades
a equívocos;
7.
Recomenda-se aos grupos que fazem uso religioso da Ayahuasca
que se constituam em organizações jurídicas, sob a condução de pessoas
responsáveis com experiência no reconhecimento e cultivo das espécies vegetais
sagradas, na preparação e uso da Ayahuasca e na condução dos ritos;
8.
Compete a cada
entidade religiosa exercer rigoroso controle sobre o sistema de ingresso de
novos adeptos, devendo proceder entrevista dos interessados na ingestão da
Ayahuasca, a fim de evitar que ela seja ministrada a pessoas com histórico de
transtornos mentais, bem como a pessoas sob efeito de bebidas alcoólicas ou
outras substâncias psicoativas;
9.
Recomenda-se
ainda manter ficha cadastral com dados do participante e informá-lo sobre os
princípios do ritual, horários, normas, incluindo a necessidade de permanência
no local até o término do ritual e dos efeitos da Ayahuasca.
10. Observados
os princípios deontológicos aqui definidos, cabe a cada entidade e a seus membros indistintamente,
no relacionamento institucional, religioso ou social que venham a manter umas
com as outras, em qualquer instância, zelar pela ética e pelo respeito mútuo.
Proposições:
1. Quanto às pesquisas do uso terapêutico da Ayahuasca
a.
Devem-se
fomentar pesquisas cientificas abrangendo as seguintes áreas: farmacologia,
bioquímica, clínica, psicologia, antropologia e sociologia, incentivando a
multidisciplinaridade;
b.
Sugere-se ao
CONAD que promova e financie, a partir de 2007, pesquisas relacionadas com o
uso e efeitos da Ayahuasca.
2. Quanto à questão ambiental e ao transporte:
a.
Sugere-se ao
CONAD que considere a possibilidade de intercâmbio com o CONAMA, se possível
lançando mão do auxílio das entidades religiosas, no sentido de estabelecer
medidas de proteção às espécies vegetais que servem de matéria prima à
Ayahuasca, por meio de legislação específica para essas plantas de uso
ritualístico religioso, as quais não podem ser tratadas indistintamente como um
produto florestal não madeireiro.
b. Sugere-se ao CONAD ainda, que faça os encaminhamentos
devidos junto aos órgãos competentes do Estado, no sentido de regulamentar o
transporte interestadual da Ayahuasca entre as entidades, ouvindo-se
previamente os interessados.
3. Quanto à efetividade dos princípios deontológicos:
a.
Sugere-se ao
CONAD que estude a possibilidade de fixar mecanismos de controle quanto ao uso
descontextualizado e não ritualístico da Ayahuasca, tendo como paradigma os
princípios deontológicos ora fixados, com efetiva participação de
representantes das entidades religiosas.
b.
Solicita-se ao
CONAD apoio institucional para a criação de instituição representativa das entidades religiosas que
se forme por livre adesão, para o exercício do controle social no cumprimento
dos princípios deontológicos aqui tratados.
c.
Sugere-se ainda,
caso os princípios deontológicos aqui definidos sejam acatados, que disto seja dada
ampla publicidade, preferencialmente com a realização de um segundo seminário
organizado pelo próprio CONAD auxiliado pelo Grupo Multidisciplinar de
Trabalho, do qual devem participar todas as entidades, sem prejuízo do
encaminhamento formal do ato a todos os órgãos dos Ministérios Públicos e da
Magistratura Federal e Estaduais, Polícia Federal e Secretarias de Segurança
Pública dos Estados.
Brasília, 23 de Novembro de
2006.
Dartiu Xavier da Silveira
Filho
__________________________________________
Presidente do GMT –
Representante do CONAD
Edson Lodi Campos Soares
____________________________________________
Vice-Presidente
do GMT - Representante de Mestre José Gabriel da Costa
Paulina do
Carmo Arruda V.Duarte________________________________________
Representante da Secretaria Nacional Antidrogas/GSIPR
Domingos
Bernardo Gialluisi da Silva Sá ___________________________________
Representante da Câmara de
Assessoramento Técnico-Científico do CONAD
Ester Kosovsky _______________________________________________________
Universidade Federal do Rio
de Janeiro e OAB-RJ
Edward John Baptista das Neves MacRae
_________________________________
Membro do
GMT - Representante do CONAD
Roberta Salazar Uchoa_________________________________________________
Membro do GMT -
Representante do CONAD
Isac Germano
Karniol __________________________________________________
Membro
do GMT – Representante do CONAD
Jair Araújo Facundes
__________________________________________________
Membro
do GMT - Representante de Mestre Raimundo Irineu Serra
Cosmo Lima de Souza
_________________________________________________
Membro do GMT -
Representante de Mestre Raimundo Irineu Serra
Alex Polari de Alverga
_________________________________________________
Membro do GMT - Representante
de Padrinho Sebastião
Luis
Antônio Orlando Pereira ____________________________________________
Membro do GMT -
Representante de Outras Linhas
Wilson
Roberto Gonzaga da Costa _______________________________________
Membro do GMT - Representante
de Outras Linhas
[1] A especialista na área de psicologia, indicada pelo CONAD, Dra Eroy Aparecida da Silva declinou de sua participação no GMT.
[2] Vide Dossiê Ayahuasca – GMT (2006)
[3] Vide Dossiê Ayahuasca – GMT (2006)
[4] Ministérios da Justiça, Relações Exteriores, Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Departamento de Polícia Federal, ANVISA, IBAMA, FUNAI, OAB, Associação Médica Brasileira, Associação Brasileira de Psiquiatria e confissões religiosas usuárias do chá Ayahuasca.
[5] Vide Dossiê Ayahuasca – GMT (2006)
[6]
“Art. 2o Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas,
bem como o plantio, a cultura e a exploração de vegetais e substratos dos quais
possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de
autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de
Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de