Meu pai me levava no Alto Santo. O Alto Santo era muito longe da cidade, tudo era longe. Você chegava lá e via as maiores autoridades do Estado fazendo reverência a ele, se curvando diante do Mestre Irineu. Então, para mim, isso era um ato formal. Quem é aquele homem tão grande, negro, com a mão grande, enorme, que pegava e engolia a mão da gente, que fazia as maiores autoridades do Estado se curvar diante dele? Essa é a lembrança que eu tenho dele, sentado em uma cadeira e os políticos, inclusive alguns beijando a mão dele, pedindo a bênção a ele, beijando a mão dele. Aquilo ali, pra mim, nunca mais me saiu da minha mente. O pessoal chegava e pedia bênção ao padrinho pro Mestre Irineu. Só que não era somente gente comum, simples, do povo, lá da comunidade dele. Eram autoridades do Estado, eram deputados, políticos, vereadores, governadores. Na época, eu me lembro do Guiomard Santos, Jorge Kalume, os políticos dos anos 60, inclusive meu pai. Meu pai é um dos que tinham muito respeito. Papai sempre trabalhou muito pela comunidade rural. Ele sempre foi animado pela criação e pela produção, trazia sementes, trazia casais de animais para reproduzir, e sempre muito vinculado com os produtores.
O Acre é isso. Eu volto a falar que o que vem da floresta e o que vem das nossas entranhas é o daime. O daime é daqui, tem uma diferença grande, inclusive na diferença de valor, tem a nossa cara, o nosso jeito. É expressão da nossa cultura. Eu tenho muito orgulho disso, inclusive tenho todo o cuidado com essa religião, essa doutrina, que ela possa ser registrada de forma honesta correta, para que não fique nos clichês que alguns tentam distorcer. Nas aldeias indígenas, os índios têm um respeito muito grande pelo uso do daime. Tem um ritual, é uma bebida sagrada. Eles têm um respeito por aquele momento de se tomar o daime. O que significa pros jovens, crianças e idosos... Se a liderança não autoriza, não tem como ser consumido.
É uma coisa muito bonita o que o Mestre Irineu e seus seguidores fizeram. Foi uma associação dessa cultura indígena da floresta, compartilhando com a vida urbana e rural, fazendo essa interface. Interessante que está vivo, sobreviveu até hoje. Que não tenho dúvida que vai seguir em frente. O mundo precisa, o Acre precisa, o Brasil precisa. A coisa mais bonita pra mim é a capacidade de criar uma harmonia, uma convivência, que não é fácil. O mundo ainda não achou um modo correto de viver. Ali me parece que é um lugar que está bem resolvido. A contribuição social que o daime tem dado aqui no Acre é algo inestimável. As tentativas de distorção, as tentativas de maldar ou até de intervir, graças a Deus todas não tiveram sucesso. A força do daime, a força da doutrina, não permitiu. Isso é motivo de orgulho, a festa religiosa. Você tomando daime, você fica ali uma hora, sai fortalecido, quase purificado. São elementos especiais e de respeito. Tinha um pouco de tudo, como, aliás, ainda tem. Um pouco mais naquela época, era mais forte ainda. Você tinha respeito, medo, preconceito. Uns estavam lá com medo, outros falavam mal por preconceito, outros estavam lá por respeito, outros em busca de conhecer.
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