(Esse depoimento faz parte da obra O Terceiro Testamento - Um Fato para a História, Sebastião Jaccoud, Página Um Editora Ltda., Goiânia, 1992. Encontra-se na íntegra, exceto o prefácio, que será publicado em breve).
Certa noite em Lumiar, um distrito do antigo Estado do Rio de Janeiro, quando eu devia estar com mais ou menos cinco anos de idade, tive um sonho que me marcou para o resto da vida. Tratava-se de uma reunião de pessoas num ambiente rural, onde elas conversavam e cada uma defendia um ponto de vista diferente. De repente, uma força muito forte começou a balançar as árvores ao redor do lugar onde estavam aquelas pessoas absortas que eu via ali reunidas.
Desde então, mesmo durante as minhas peraltices de criança, o sonho não me fugiu do pensamento e serviu para nortear minha conduta diante da vida. No sonho, a força, na forma de um redemoinho, avançou e alcançou o local da reunião. Fomos balançados por ela e eu pude ouvir uma voz estrondosa afirmar:
- Deus existe e domina tudo isso que você está vendo.
No limiar da década de 30, quando o país atravessou profunda alteração política com a ascensão de Getúlio Vargas, o meu pai, Oriovaldo, um pequeno empreiteiro de obras públicas de Lumiar, começou a ser retaliado pela administração política do local. A conseqüência mais danosa disso foi o agravamento das modestas condições de sobrevivência da família. Nesta altura, éramos cinco filhos.
Os dois irmãos mais velhos, adolescentes, saíram a procura de emprego em Friburgo, a sede do distrito de Lumiar, como forma de amenizar as despesas de meu pai. A decisão que tomaram também me estimulou a sair de casa a procura de emprego. Aos dez anos, comecei a trabalhar em casa de família em troca de alimento. Depois, trabalhei num bar, numa indústria de alimentos e numa mercearia em Cachoeira do Macacu. O nome original era Cachoeira do Macaco, mas o Macacu foi consagrado pelo povo.
Por volta de 1936 comecei a trabalhar como aprendiz na oficina de construção naval da Companhia Costeira. O ambiente me atraiu para a vida de marinheiro. No ano seguinte, comecei a trabalhar em lanchas e em navios rumo ao alto mar. Na Europa, estavam tendo início os preparativos da Segunda Guerra. Foi quando um segundo fato me marcou tanto quanto aquele sonho sobre a existência de Deus. Ouvi, no rádio, uma reportagem sobre a decisão de um papa, talvez Pio X, que benzeu os canhões e abençoou soldados italianos que se dirigiam para ocupar a Absínia, um país pequeno que possuía uma enorme jazida de carvão.
Aquilo me deixou um tanto contrariado. Logo o papa, que eu havia aprendido a respeitar como o representante de Deus na terra, abençoava homens e armas que iam invadir um país e matar seus habitantes. O papa abençoava o uso da força para que fosse retirado um mineral de um país pobre. Nos anos seguintes, aquele carvão foi utilizado no vergonhoso holocausto desencadeado pelos nazi-fascistas contra os judeus.
A atitude do papa me desencorajou bastante e serviu como justificativa para abandonar o seguimento na Igreja Católica. Contudo, o papa não me fez esquecer e confiar na voz do sonho: "Deus existe e domina tudo isto que você está vendo". Em 1939, quando estava com 16 anos, a guerra foi declarada. Tomei conhecimento dela durante uma viagem no Atlântico, que já era uma zona considerada de bastante perigo.
A partir daquele ano, vários navios brasileiros foram torpedeados. O Brasil se integrou ao grupo de países aliados na luta contra o nazi-fascismo em agosto de 1942. Durante a guerra, participei de comboios para transporte das tropas, alimentos e material beligerante. Tive o desprazer de assistir o torpedeamento e naufrágio de navios do comboio, além da morte de meus colegas marítimos brasileiros e estrangeiros.
Ainda durante o esforço de guerra, trabalhei em navios que trouxeram para a Amazônia os Soldados da Borracha. Eram os nordestinos recrutados para a produção da borracha que seria utilizada pelas indústrias bélicas das forças dos países do eixo. A maioria destes homens, cheia de esperança, embarcava em São Luiz e Fortaleza e desembarcava em Belém.
De lá, tomavam navios fluviais com destino aos seringais da Amazônia, uma região que eu desconhecia por completo. Na época, jamais imaginei que um dia iria também desembarcar na floresta com a mesma inexperiência daqueles soldados. Nós, da Marinha Mercante, fomos incorporados à Marinha de Guerra, o que nos valeu ao término da Segunda Guerra a condecoração de ex-combatentes.
Quando a guerra acabou continuei o trabalho como militante do sindicato dos marinheiros no Rio de Janeiro. Exerci as funções de delegado, secretário e representante na Federação dos Marítimos até 1964. Neste ano, o país atravessou uma crise grave e fui forçado a me desligar das atividades sindicais e políticas e a requerer a aposentadoria.
Passei por um momento delicado. As trágicas recordações da guerra se aliaram à escuridão política que começava a tomar conta do Brasil. Morava em Belém e tinha responsabilidade de conduzir uma família com seis pessoas. Mas levava uma vida de aparente conforto, dentro dos padrões de classe média da época. Possuía carros, uma empresa de ônibus, uma empreiteira de conservação de navios, casa de veraneio e uma razoável disposição para expandir aquele patrimônio. Porém, a influência negativa da guerra e do regime militar de 1964 persistiu mais forte e comecei a me sentir muito deprimido.
Os bens materiais que possuía já não me satisfaziam plenamente. Havia algo que gostaria de alcançar, mas não sabia onde estava e tampouco como fazer para encontrá-lo. Este era um sentimento de frustração que qualquer humano enfrenta em algum momento da vida. Tentei resolvê-lo através de diferentes religiões que freqüentei, mas não encontrava solução.
Acabei me convencendo que era um problema que deveria ser resolvido com a ajuda do meu próprio esforço. Mas não sabia por onde começar a resolvê-lo. Certo dia, um tanto desesperado, implorei a Deus para que me devolvesse a tranqüilidade. Pedi ainda que Deus me ajudasse a acabar os bens materiais que eu julgava concorrerem para o agravamento da minha desordem interior. Pedi a Deus que esse despojamento não resultasse na desintegração da família e que a mesma não fosse submetida a privações drásticas, como as que enfrentei durante a infância.
Em pouco tempo, desordenadamente, vendi os bens por qualquer preço e logo me vi apenas com o irrisório salário de marinheiro aposentado. Diante disso, iniciei uma série de viagens por terra, a partir de Belém, como se estivesse em busca da saída do labirinto que simbolizava minha vida nos últimos anos. Primeiro, mudei com a família para a cidade de Anápolis, em Goiás, mas passei pouco tempo e não obtive resultado. Em 1965 empreendi uma viagem com destino ao Acre, um lugar muito distante e isolado onde acreditava poder reconstruir a vida com tranqüilidade.
O meu roteiro até o Acre incluía uma passagem pela cidade de Porto Velho, no então território de Rondônia, onde morava Antônio Sapateiro, tio da Zizi, minha esposa. Demorei 13 dias de Anápolis até Porto Velho, percorrendo uma estrada precária de barro. O Antônio, que não sabia que eu acabara com meu patrimônio em Belém e muito menos que havia mudado com a família para Anápolis, ficou surpreso quando cheguei enlameado num jeep à sua casa.
Antônio ouviu minhas angústias e eu as dele, pois havia bastante tempo não nos encontrávamos para uma conversa demorada como é tradição entre velhos amigos. No decorrer dessa troca de experiências, o Antônio Sapateiro falou de uma bebida de origem indígena da qual havia tomado conhecimento no Acre, justo o lugar para onde eu pretendia prosseguir a viagem. Ele disse que a bebida, chamada de Santo Daime, era um remédio muito eficaz que reunia o poder de nos estimular a corrigir as falhas cometidas na vida, além do poder da cura.
Fez outros comentários alentados sobre a bebida e acabou perguntando se aceitava experimentá-la.
- Depois de passar pelo que já passei, tenho coragem de mamar até em onça, respondi.
- Não é assim, rapaz. É preciso respeitar a bebida, repreendeu-me o Antônio.
Senti-me inocente porque a possibilidade de tomar uma bebida que poderia ajudar a resolver minha vida soava muito estranho. Marcamos o dia para tomarmos a bebida e, aconselhado pelo Antônio, passei a me submeter a uma dieta. Aqueles três dias que antecederam a experiência foram os únicos durante os quais me abstive de sorver doses de um litro de conhaque, o meu companheiro de viagem.
O Antônio reuniu em casa alguns companheiros numa noite de quarta-feira de abril, por volta das 20 horas. Apanhou um garrafão e serviu a bebida aos presentes. Fui o último a tomar aquela bebida com gosto travoso, meio acre. Escapuli em seguida para ir ao banheiro escovar os dentes. Nem sabia que ali começava a renascer. Depois de dez minutos sentei numa cadeira e comecei a ver os objetos e as pessoas de forma diferente do que eram.
Mas o que mais me chamou a atenção foi a existência de um tapete pendurado na parede com uma paisagem. Fiquei fascinado porque havia no tapete uma floresta e dois veados. Quando olhava para o tapete os veados movimentavam as cabeças e as árvores balançavam com a força de uma brisa suave. A brisa estava limitada àquela paisagem. Lembrei-me do sonho na infância sobre a existência de Deus.
Depois, concentrado, de olhos fechados, comecei a ver outras paisagens, pessoas, flores, rios, mares. Era o esplendor da natureza. Chamei o Antônio para lhe contar o que estava vendo.
- Tenha calma, não se perturbe com nada porque é a miração, explicou ele, que transferiu-me da cadeira para uma rede na sala, bem na frente do tapete.
Voltei a me concentrar e surgiu uma cobra imensurável. Consigo dizer apenas que era muito longa, de cores semelhantes às de uma jibóia. A cobra se aproximou para bem perto do meu rosto, de tal maneira que senti o sopro da respiração dela. O estranho: a cobra possuía bigode, cujos fios chegavam a tocar meu rosto. O medo foi crescendo e fui me agarrando com firmeza nos punhos da rede na tentativa de me distanciar da cobra. Já estava quase para cair fora da rede, mas a cobra insistia em se aproximar. Consegui dizer em pensamento:
- Tenho fé em Deus de me livrar disso.
A cobra desapareceu, mas a miração prosseguiu. Vi um trono majestoso ocupado por um homem preto, alto, que vestia um terno impecavelmente branco com gravata preta. O homem estava numa posição de profunda meditação com o braço direito apoiado no trono. Os dedos da mão esquerda tocavam levemente a têmpora. Demorei muito tempo contemplando aquele homem impassível cujo trono passou a mover-se junto com seu corpo quando comandava em pensamento. Desceu uma luz do astral, na forma de um tubo com cerca de 100 milímetros de diâmetro, que tocou levemente a cabeça daquele desconhecido.
Do corpo dele começaram a saltar molas de fios de pouca espessura. Os fios desenrolavam e espalhavam-se pelo globo terrestre. Um desses fios veio e tocou no meu coração, provocando um certo impacto igual ao de quem toma um choque elétrico. Nesse instante, cometi uma grande bobagem ao formular o seguinte pensamento:
- Me meti na pior macumba do mundo e o chefe é aquele preto.
Mas quando disse, também em pensamento, que tinha fé em Deus de me livrar daquilo, a miração sumiu. As visões voltaram logo a seguir, quando apareceu outro homem trajando um uniforme de gala que identifiquei como sendo de um exército superior. Ele convidou-me para que realizássemos uma viagem no astral. Respondi que se fosse ordenado por Deus aceitaria. O homem disse que eu estava muito doente e que necessitava ser submetido a um tratamento no cérebro. Insistiu para que o acompanhasse e retruquei:
- Mas estou bem de saúde.
Ele insistiu para que o acompanhasse na viagem e então exigi-lhe que apresentasse uma prova da doença.
- É pra já, respondeu o oficial.
E naquele mesmo instante me vi com ele a percorrer as minhas entranhas. Dentro delas pude ver algo parecido com o fole de uma sanfona pendurado. Esse objeto apresentava dezoito compartimentos dos quais apenas um funcionava. O homem explicou-me que isto era o meu coração. Ele possuía uma varinha e com ela tocou aquilo que disse ser o meu coração. Imediatamente aqueles compartimentos sanfonados retomaram o funcionamento.
Seguimos a viagem e chegamos no alto da minha própria cabeça. Estávamos num hospital com vários médicos e enfermeiras. Como se existisse um zíper, um dos médicos abriu o couro cabeludo e o crânio de trás para frente.
A massa cefálica ficou exposta e eu acompanhava toda a preparação da cirurgia a que seria submetido. A equipe mostrou-me seis tumores em formação. O oficial se retirou quando começou a cirurgia. A minha cabeça era como se fosse um arquivo com muitas fichas. Um dos médicos apanhou uma pinça e começou a retirá-las. Elas foram lavadas num líquido alvo por outros auxiliares. Quando a última ficha foi retirada e lavada, imediatamente o médico começou o trabalho de reinstalação de todas exatamente nos pontos de origem do cérebro.
Tão logo a equipe encerrou o trabalho, o oficial reapareceu e o médico disse:
- Está pronto, e fechou o crânio e o couro cabeludo da mesma maneira como fizera para abri-los.
A minha cabeça, ou melhor, o hospital, se transformou em aeroporto, onde um imenso avião estava pronto para que eu pudesse realizar aquela viagem a convite do oficial. Caminhamos até o avião e começamos uma viagem demorada durante a qual o oficial mostrou-me palácios e primores do reino celestial.
Alcancei um plano onde os objetos eram semelhantes aos existentes na terra. A diferença era a profunda tranqüilidade em todos aqueles lugares por onde andamos. Nos deparamos com dois objetos que apesar de vulgares na terra me deixaram bastante intrigado. Um deles era um enorme relógio cujo pêndulo demorava cem anos para realizar o movimento de uma extremidade à outra. O outro objeto era uma enorme balança destinada a pesar os vícios e virtudes humanas. Diante do imenso relógio e da balança, o oficial me informou que todos os homens e mulheres teriam que passar por ali para uma conferência e julgamento depois que desencarnassem. Tive ainda a oportunidade de contemplar outras maravilhas que não consigo descrevê-las. Elas não podem ser comparadas com nada neste mundo. Aos poucos as visões ou mirações como o Antônio havia dito, diminuíram. Eu continuava deitado na rede e comecei a acordar lentamente. Os companheiros do Antônio haviam todos ido embora. Eram duas horas da madrugada.
Contei tudo isso ao Antônio e outras coisas que depois sumiram da minha memória. Ele perguntou-me se gostaria de continuar e tomar outra vez.
-Só se for agora, respondi.
Outra vez o Antônio me corrigiu.
- Não é assim porque sempre que a gente vai tomar o Daime precisa de repouso e preparação.
Passei mais alguns dias em Porto Velho e tomei mais vezes a bebida. Decidi cancelar a viagem para o Acre e voltei para Anápolis. No ano seguinte com a família retornamos para Belém. De lá, foi que pude realizar a tão desejada viagem ao Acre.
Certo dia, uma companhia de navegação necessitou de um Mestre para comandar um navio até o Acre. Nunca havia comandado navio fluvial, mas aceitei prontamente a responsabilidade. Era uma carga enorme de víveres e o reboco de uma alvarenga com um gerador de luz de 13 toneladas destinado à cidade de Rio Branco, a capital do Acre. Demorei mais de um mês numa viagem cheia de acidentes e encalhes nos bancos de areia existentes nos rios da região.
Depois de entregar a carga aos destinatários, o que mais queria era conhecer o Mestre Raimundo Irineu Serra que o Antônio Sapateiro disse ser o chefe da Doutrina do Daime. Aliás, o Antônio ganhou o apelido de Antônio Sapateiro porque esta era a sua profissão. Era ele quem confeccionava os sapatos encomendados pelo Mestre Irineu, um homem que ele me contara ser de uma estatura enorme, exatamente 2 metros.
- As indústrias não produzem formas para a medida dos pés dele e faço tudo artesanalmente, explicou o Antônio. As minhas tentativas de conhecer Mestre Irineu quase fracassaram durante a primeira estada em Rio Branco. Por um motivo qualquer as pessoas a quem pedi para que me levassem até sua casa desistiam. Somente no penúltimo dia pude apresentar-me ao Mestre Irineu.
Era o dia 27 de abril de 1966 e demorei quase meio-dia para chegar até a sua residência, percorrendo uma estrada estreita e cheia de atoleiros. Aquele era um dia de sessão do Círculo Esotérico Comunhão do Pensamento, que naquela época estava incorporado aos rituais da Doutrina fundada por Mestre Irineu.
Sentia-me literalmente um marinheiro de primeira viagem naquela estrada tão difícil. As pessoas que se dirigiam para a sessão passaram por mim no caminho. A minha perna direita, ferida durante o desembarque da carga do navio, dificultava ainda mais a caminhada. Várias vezes pensei em desistir porque não sabia a distância que faltava percorrer.
Minha salvação foi uma pick-up que chegou e que tinha como motorista o Raimundo Gonçalves, o Mundim, e junto o presidente do centro, Leôncio Gomes da Silva. Ao se aproximarem de mim eles se apresentaram e disseram que o Mestre Irineu havia pedido para que fossem me apanhar. Cheguei no centro por volta das 18 horas, quando já estava escuro. Estavam todos preparados para o início da sessão.
Quando entrei na porta do centro, avistei, no fundo do salão, um homem alto, preto, que estava sentado numa enorme cadeira. A cadeira era semelhante àquela que vi pela primeira vez quando tomei o Daime com o Antônio. Ao me aproximar, o Mestre Irineu levantou-se e finalmente pude conferir seu gigantismo físico.
Nos abraçamos e a minha cabeça ficou na altura do coração dele. Eu ouvi, durante o instante em que permanecemos abraçados, as batidas daquele coração. Ainda hoje elas me confortam. O Mestre Irineu chamou a atenção dos que estavam no salão para fazer a minha apresentação à irmandade. Quando todos se aproximaram disse:
- Este aqui é o meu amigo invisível de quem sempre falei que um dia ele ia chegar. Ele que estava no mundo, hoje está aqui.
Como aquela sessão estava em andamento, Mestre Irineu chamou o presidente Leôncio e pediu para que me levasse para tomar o Daime. Antes da concentração fui colocado pelo Mestre Irineu na mesa, no centro do salão, sobre a qual havia um Cruzeiro com dois braços, velas e flores.
Durante a primeira concentração, da qual eu participava com a presença do chefe do Santo Daime, a miração logo chegou. O que eu havia visto quando tomei pela primeira vez começou a se repetir. Teve um momento que surgiu uma pequenina esfera, vinda do astral, que irradiava chuviscos de puro ouro. A esfera circulou pelo salão e pela mesa e se instalou em cima do Cruzeiro. Da esfera saíram partículas de ouro que inundaram o salão e depois o mundo.
Quando encerrou a concentração, o Mestre Irineu perguntou:
- Seu Jacó, o que o senhor me diz sobre os nossos modestos trabalhos?
Outra vez vacilei ao devolver como resposta uma pergunta:
- O senhor tem coragem de chamar isso de modesto?
Prosseguimos a conversa e depois Mestre Irineu pediu ao Presidente Leôncio que me abrigasse em sua casa naquela noite. Eu precisei voltar de manhã cedo para prosseguir viagem, mas antes fui até a casa do Mestre Irineu para as despedidas. Ainda tive a oportunidade de realizar outras viagens ao Acre e sempre aproveitava para participar dos rituais da Doutrina. No começo de 1971, decidi, de maneira um tanto intempestiva, residir no Acre. Estava em Belém sofrendo graves crises renais. Os médicos diagnosticaram a existência de um cálculo do tamanho de um caroço de azeitona. Baseados numa radiografia que até hoje guardo comigo, os médicos me disseram que necessitava ser operado com urgência.
No dia em que deveria marcar a cirurgia me dirigi até o porto de Belém e outra vez fui contratado por uma empresa de navegação para nova viagem ao Acre. Desisti da cirurgia por acreditar que antes deveria ouvir a recomendação do Mestre Irineu. Quando me reapresentei ao Mestre com a guia de internação, as receitas e a radiografia, disse-lhe que queria um conselho sobre se deveria ser operado pelos médicos ou tratado pelo Daime.
- O Daime já resolveu coisas mais sérias do que isso, disse Mestre Irineu, depois de conferir a radiografia contra a luz do sol que penetrava pela janela da casa. Ele perguntou-me se tinha fé em Deus e respondi que sim.
- Gosto de ver homem assim, resolvido, completou o Mestre.
Naquele mesmo dia determinou a algumas pessoas da irmandade que fosse realizada uma sessão de cura com o Daime em meu benefício. A sessão foi realizada, a pedra sumiu e passados mais de vinte anos não voltei a sofrer com as tais crises renais.
A partir daí decidi ficar e entreguei-me ao estudo da Doutrina. Mas logo, cerca de 40 dias depois, precisamente no dia 6 de julho de 1971, o Mestre Irineu fez a viagem de volta à corte celestial. Prossegui os estudos e dediquei-me a registrá-los com entusiasmo e honestidade. Depois, recebi a instrução e autorização para publicá-los com o título de "Um Fato para a História".
Estava e continuo consciente de que o fato para a história é o profundo significado para a humanidade da vinda do Salvador na pessoa de Raimundo Irineu Serra, a quem Deus confiou a missão de reimplantar a Doutrina de Jesus Cristo para cumprimento do Terceiro Testamento.
Para justificar o que digo, tomo como base os hinários que regem a Doutrina, a começar pelos hinos que nos deixou o Mestre Irineu. Em várias passagens do hinário O Cruzeiro, Mestre Irineu afirma ter sido ensinado para cumprir a missão de instituir a doutrina do Salvador com o nome de Jesus. Para citar um desses hinos destaco quatro versos daquele intitulado UNAQUI: "Eu estou aqui / Foi Deus do céu que me mandou / Sou filho da Virgem Mãe / Lá no céu, Jesus Cristo Salvador". Ou ainda, EU QUERO CANTAR IR: "Jesus Cristo me mandou / Para mim viver aqui / Sou eu, sou eu, sou eu / Sou eu sou bem feliz". Noutro, SEXTA-FEIRA SANTA: "A minha mãe que me ensina / Me diz tudo que eu quiser / Sou filho desta verdade / E meu pai é São José". Em PAPAI VELHO: "Até que enfim, até que enfim, até que enfim / Eu recebi o meu bastão / Pude me levantar / Com a minha caducação".
A caducação não significa a senilidade, mas sim a Doutrina que Mestre Irineu conseguiu desenvolver com nova roupagem para o novo tempo. A dedicação de alcançar o conhecimento da verdade e transferí-lo aos seguidores exigiu do homem Raimundo Irineu Serra a extremada dedicação durante a existência material.
Para consolidar a base doutrinária o Mestre teve que percorrer os mesmos caminhos de tentações, traições e espinhos trilhados quando esteve com a humanidade como Jesus Cristo.
Raimundo Irineu Serra nasceu no dia 15 de dezembro de 1892, no Maranhão, numa localidade denominada São Vicente de Férrer. Era filho de ex-escravos e com a idade aproximada de 11 anos empreendeu uma longa viagem para a Amazônia. Como todo nordestino, tinha o sonho de enriquecer com a produção da borracha. Ele nos contou que desde a infância sonhava com uma mulher que se chamava Clara.
Depois, quando deixou a cidade de São Vicente de Férrer, o garoto Raimundo Irineu Serra trabalhou em São Luiz, a capital do Maranhão, para adquirir o dinheiro suficiente para pagar a passagem de navio até Belém. Durante a viagem sonhou várias vezes com Clara. Nunca revelou o conteúdo das conversas que teve com Clara neste período. Teve que trabalhar mais em Belém para poder prosseguir a viagem até Manaus, onde engajou numa turma de nordestinos que também estavam decididos a trabalhar nos seringais do Acre. Não se tem registro exato da data em que Mestre Irineu desembarcou no Acre, mas deve ter sido no começo da segunda década deste século.
Ele adentrou as florestas acreanas até alcançar território peruano, onde tinha informações da presença dos primos Antônio e André Costa, que também haviam deixado o Maranhão. Foram estes primos que apresentaram a Irineu uma bebida tradicionalmente utilizada pelos índios, mas que os brancos e os próprios índios apelidavam-na com vários nomes. Os irmãos Antônio e André a chamavam de purgativo.
Mestre Irineu tomou com eles pela primeira vez a bebida. Anos mais tarde contaria aos seguidores a experiência. A certa altura daquela primeira sessão com André e Antônio, Mestre Irineu chegou a alegrar-se com o aviso dado por André de que uma mulher queria falar com ele numa próxima sessão com o uso do purgativo.
Naquela noite, Mestre Irineu tomou a bebida várias vezes. A bebida estava acondicionada numa lata de dezoito litros na qual vinha o querosene utilizado nos seringais.
- A gente tomava na cuia grande, costumava lembrar sobre aquelas sessões.
Numa das vezes em que repetiu a dose, Mestre Irineu viu um ser banhando-se dentro da lata. Aquilo não o agradou, mas o próprio ser tratou de se apresentar falando em espanhol.
- Eu sou D. Pizzon, o guia desta bebida. Somente você aprenderá tanto quanto eu. Ou mais. E sumiu.
Na sessão seguinte, a mulher que estava querendo falar com Irineu também se apresentou espiritualmente, desta vez sem a necessidade de intermediário. O Mestre Irineu contou que a mulher disse-lhe que tinha uma missão para lhe entregar, mas que não poderia ser naquele ambiente.
Ele então preferiu passar certo período sem freqüentar as reuniões dirigidas pelos primos. Quando decidiu tomar pela terceira vez a bebida, o próprio Irineu a preparou. A mulher voltou a se apresentar e ofereceu uma missão: a missão da Doutrina de Jesus Cristo, mas o advertiu que isso não traria riquezas materiais.
- Se for para o bem da humanidade e para engrandecer o meu país, eu aceito. Senão, fica aí mesmo, respondeu.
A mulher então lhe exigiu o cumprimento de uma dieta para que ele pudesse ser iniciado nos mistérios da bebida e da Doutrina de Jesus Cristo. A receita da dieta era alimentar-se, durante onze dias, apenas de mandioca sem sal, regada com chá de cidreira sem açúcar e abstenção de relações sexuais.
A dieta era tão rígida que Mestre Irineu foi advertido a evitar ver roupas femininas. A alternativa para cumprir com rigor o compromisso foi o isolamento. O Mestre se estabeleceu numa colocação junto com um companheiro, que não era um dos seus parentes. Apenas a este o Mestre revelou o que faria.
A partir dos três primeiros dias Irineu começou a sentir-se fraco enquanto percorria as estradas de seringa. Ele e o companheiro criaram alguns códigos para se comunicarem para evitar romper a dieta com alguma visita imprevisível. O Mestre Irineu já sentia o corpo enfraquecido pela falta de uma alimentação adequada. Mesmo assim continuava com as atividades do trabalho no seringal, que todos sabem exigem grande esforço físico dos seringueiros. O companheiro dele ficou preocupado e certo dia resolveu temperar com sal a mandioca, mas acabou desistindo para respeitar o pedido do amigo.
Quando a mandioca cozinhou foi chamar o Mestre Irineu, que estava numa das estradas de seringa. Ao chegar no tapiri o Mestre foi bastante insinuante na reclamação contra os planos do companheiro.
- Rapaz, hoje você parece que queria me matar ao pensar em pôr sal na comida.
- Irineu, agora acredito que você está aprendendo alguma coisa com a dieta, respondeu com surpresa.
O Mestre começou a sofrer desmaios e a cambalear de tão fraco estava, sustentado por mandioca e chá. Certo dia, sentado na sapopema de uma árvore, teve a visão de uma mulher que veio viajando sobre a lua em sua direção.
Costumava contar que aquela imagem se aproximou tanto que sentiu vontade de apanhá-la com as mãos. Foi desta maneira que Irineu foi iniciado como Mestre da Doutrina cujos preceitos teria que desenvolver até o final dos seus dias na terra. A mulher, que se declarou ao Mestre como a Rainha da Floresta, lhe entregou os mistérios e o primeiro hino, LUA BRANCA: "Deus te salve ó lua branca / Da luz tão prateada / Tu sois minha protetora / De Deus tu sois estimada / Ó mãe Divina, do coração / Lá nas alturas onde estás / Minha mãe, lá no céu / Dai-me o perdão / Das flores do meu país / Tu sois a mais delicada / De todo meu coração / Tu sois de Deus estimada / Tu sois a flor mais bela / Aonde Deus pôs a mão / Tu sois minha advogada / Ó Virgem da Conceição / Estrela do universo / Que me parece um jardim / Assim como sois brilhante / Quero que brilhes a mim".
Irineu, dias depois, foi até a colocação onde moravam os primos para se despedir deles e voltar para o Brasil. Porém, antes das despedidas ouviu dos primos reclamações porque deixara de comparecer às reuniões com o purgativo. Um deles explicou:
- Irineu, fundamos uma organização, mas infelizmente você não poderá participar dela porque esteve ausente durante muitos dias.
- Não tem problema porque já estou indo embora. Vim aqui me despedir de vocês, respondeu o Mestre com resignação.
Anos depois, como integrante da Comissão de Limites do Acre, Mestre Irineu teve a oportunidade de prosseguir a caminhada pelas florestas do Território. Na comissão era o responsável pelo transporte do cofre onde eram guardados os equipamentos e valores dos engenheiros e demais integrantes da comissão.
Por volta de 1920 decidiu fixar morada em Rio Branco e trabalhou como carpinteiro, oleiro e soldado da extinta Guarda Territorial do Acre. Cerca de dez anos depois instalou-se definitivamente na localidade que era conhecida como Espalhado, que pertencia a José Francisco das Neves, o primeiro seguidor da Doutrina. O Mestre comprou de Zé das Neves a benfeitoria e batizou de Alto Santo, que posteriormente se transformou numa extensa área doada pelo então governador José Guiomar dos Santos.
No Alto Santo dedicou-se à agricultura e à organização da Doutrina, quando começou a receber outros discípulos e pessoas que apenas o procuravam, principalmente em busca de curas com a bebida. O trabalho de organização da Doutrina foi sendo consolidado lentamente na medida em que o Mestre e os discípulos iam sendo instruídos.
Essa organização consistia das revelações feitas pela bebida. O Mestre e os seguidores se valeram de uma tradição oral para guardar os princípios doutrinários contidos nos hinos que recebiam durante as sessões.
O esforço de organização da Doutrina exigiu o máximo empenho durante a existência terrena de todos aqueles pioneiros. O hinário do Mestre Irineu, O Cruzeiro, assim como o dos primeiros seguidores (Antônio Gomes, João Pereira, Germano Guilherme, Maria Damião e Raimundo Gomes da Silva), se tornaram regentes dos princípios da Doutrina.
Em cada um desses hinários está registrada a experiência daqueles que se dedicaram a procurar a verdade. O Mestre Irineu, por exemplo, recebeu o último dos 132 hinos quase no final da vida terrena - ele que havia recebido da Rainha da Floresta o primeiro hino por volta dos vinte anos de idade. Portanto, a dedicação para encerrar O Cruzeiro lhe consumiu mais de cinqüenta anos de estudos.
Hoje, quem assiste ou participa pela primeira vez de um trabalho onde se canta um desses hinários, pode ser tentado a imaginar que os hinos exigem apenas algum esforço de composição. Mas os seguidores da Doutrina sabem que as lições contidas em cada hinário são o resultado de um estudo feito quase sempre sob muito sofrimento. As mensagens do mundo espiritual e terreno estão relacionadas com as mais sublimes e amargas experiências diante do poder de Deus e da vida material.
A obstinação do Mestre e dos discípulos foi para resgatar os princípios da Doutrina de Jesus Cristo. A vinda do Salvador e a dolorosa crucificação não foram suficientes como lição para que a humanidade se aproximasse dos mistérios e alcançasse a verdade. Mestre Irineu estava convicto de que a missão que aceitou era a de preparar um batalhão, aparentemente pequeno, para enfrentar os desígnios da apuração prevista pelo Criador para o final do milênio.
A decisão de se fixar no Alto Santo foi de grande importância para a Doutrina. O Mestre conseguiu estabelecer um ponto de referência para os fiéis e assim pôde iniciar o detalhamento de um calendário ritualístico como o das sessões de concentração e hinários.
Desde o início as sessões de concentração se caracterizam por reunir os adeptos para tomar a bebida e, logicamente, concentrar o pensamento, sempre nos dias 15 e 30 de cada mês. Cada um até hoje desfruta da liberdade de procurar durante estas reuniões, depois de tomar apenas uma vez a bebida, aquilo que lhe interessar. No começo as concentrações eram encerradas apenas com preces.
Já a característica dos hinários é de louvor às entidades do reino superior dentro das datas mais representativas do calendário cristão. O primeiro hinário instituído pelo Mestre Irineu, de 7 para 8 de dezembro, foi dedicado à Nossa Senhora da Conceição. Neste dia são cantados os hinários Sois Baliza, de Germano Guilherme, e O Cruzeiro, do Mestre Irineu.
Um fato curioso que ocorria com freqüência no começo das reuniões para a realização dos hinários era a quantidade reduzida de hinos. Poucos eram os discípulos que tinham recebido algum naquela época. Um dos freqüentadores desse tempo, Raimundo Gomes da Silva, contava que, por volta de 1940, o Mestre possuía aproximadamente 10 hinos. Os outros irmãos, um ou dois hinos apenas.
As celebrações, já naquele tempo, iam do começo da noite até a madrugada do dia seguinte. Nestas ocasiões, além da abertura dos trabalhos com os hinos recebidos por Mestre Irineu, cantavam-se também os poucos hinos que cada discípulo cultivava. Para preencher o vasto tempo daquelas noites, madrugadas e manhãs, os adeptos reiniciavam o canto dos hinos na mesma ordem até o dia raiar.
O segundo hinário estabelecido no calendário por aqueles primeiros seguidores destina-se às comemorações de nascimento do Mestre Raimundo Irineu Serra, no dia 15 de dezembro. Aliás, por causa desta data é que eu estou aqui a realizar este modesto relato e, junto com meus irmãos, participar das celebrações pela passagem do Centenário de nascimento daquele que veio nos trazer a verdade e nos relembrar dos tempos primitivos de Adão e Noé, passando pelas tribos de Israel, Judá, Jacó e de tantos outros que vieram em seus devidos tempos para disseminar o conhecimento religioso àqueles que seguem com Deus desde o gênese.
Aqui estamos a nos preparar por recomendações do Criador para o despertar da Nova Era, a de Aquário. O Mestre Irineu, cujo nome significa o enviado de Deus, veio a este mundo consciente de que a humanidade necessitava despertar e religar-se a Deus. Cônscio disso, o Enviado de Deus recebeu a missão de reunir como pastor as ovelhas que dele se desgarraram ou que permaneceram sob a sua proteção durante os sucessivos e amargos encontros que teve com a humanidade para ensinar a verdade.
A passagem do Centenário de nascimento do Mestre Raimundo Irineu Serra nos deixa reflexivos diante do que é o tempo absoluto e do que representa o tempo relativo. Os seguidores da Doutrina sabem que no decorrer do tempo relativo temos a oportunidade para resgatarmos na memória as palavras do nosso Pai Criador, as únicas que para sempre viverão.
O Mestre Irineu contou que, neste século, o Papai, como chamava o Criador, determinou a reencarnação de todos os espíritos que não tiveram a permissão de elevar-se ao Reino Celeste. A comprovação desta afirmação já se tornou evidente diante da conduta das pessoas da Era que está se fechando. Segundo o Mestre Irineu, todos estes espíritos que se achavam a perambular na órbita terrestre teriam que descer para a apuração final com a chance de se prepararem para a Nova Era.
Isto não permite que sejam feitas deduções fatalistas, mas entendo que o ajuste de contas está ocorrendo em cada um de nos. É algo semelhante a um dilúvio interior pelo qual cada criatura passará para resgatar as incontáveis reencarnações durante as quais veio com o compromisso de buscar o aperfeiçoamento. É certo, portanto, que a inundação da terra pelos espíritos na corrida pelo resgate dos carmas causa crises às famílias, sociedades e nações.
Somente quando este ciclo se cumprir a humanidade estará preparada para o regozijo. A emblemática da vinda de Jesus Cristo - a era cristã como se consagrou no calendário da humanidade - foi Peixes, que identificou e uniu os cristãos durante os dois mil anos marcados pelas tragédias. A crucificação de Nosso Senhor Jesus Cristo foi a primeira e a mais significativa de todas as tragédias que se sucederam.
Em um dos hinos, ESTRELA BRILHANTE, religa-nos: "Estrela Brilhante / Vós sois a minha luz / É a Virgem Maria / E o Menino Jesus / O menino Jesus / Nasceu para ensinar / Cumprir vossa missão / Para remir e salvar / Para remir e salvar / Ninguém vos conheceu / Ganhou o vosso nome / Depois que vós morreu / Depois que vós morreu / Todo mundo tem amor / Depois que assassinaram / O Mestre ensinador".
Mas Jesus cumpriu todas as etapas da missão que Deus lhe havia confiado e regressou com o mesmo poder. Mestre Irineu, sendo ele Jesus Cristo, veio para reimplantar a Doutrina. Assim como Jesus Cristo, Mestre Irineu também não negou nenhuma das religiões ou ritos através dos quais o homem busca aproximar-se de Deus. Aconselhava aos seus seguidores que não abandonassem as religiões de origem, mas assinalava que não permitiria suas manifestações dentro dos rituais que organizou. Ele não deixou estagnados os ensinos de Jesus Cristo e consignou no calendário dos rituais que comanda as datas mais insignes do cristianismo. Uma delas é a celebração do Natal, comemorada do dia 24 para o dia 25 do mês de dezembro, quando, durante o festejo, se cantam os hinários Sois Baliza e O Cruzeiro. O nascimento de Jesus, cuja maioria dos festejos neste final de milênio não se coaduna com o significado da missão, parece ter servido apenas para originar incontáveis doutrinas, seitas e religiões que fragmentaram-se. Veremos que o mesmo ocorre na Doutrina do Daime.
Em nome de Jesus ergueram e destruíram templos, subjugaram povos e nações, ostentaram poder e até mataram. O nome de Jesus atravessou fronteiras e mares e a cruz acabou tornando-se conhecida no mundo, mesmo entre civilizações muito antigas que já haviam recebido a Jesus Cristo como guia com outros nomes.
O próximo passo dado por Mestre Irineu para o calendário do centro foi estabelecer as celebrações em louvor aos Três Reis do Oriente, aqueles que saíram na frente guiados pela estrela ao encontro de Jesus para presenteá-lo com mirra, incenso e ouro. A irmandade canta os hinários Sois Baliza e O Cruzeiro.
Em mais um dos hinos, EU PEÇO A JESUS CRISTO, Mestre Irineu publicou que detém as forças da floresta e do astral que lhe são dadas por sua Mãe, a Rainha da Floresta, e chama os Três Reis do Oriente pelos nomes de Titango, Agarrube e Tintuma.
A estes três seres divinos Deus confiou o poder de zelar pela luz resplandecente da corte celestial. Para retribuir a pureza e o amor manifestados pelos Reis do Oriente, Mestre Irineu, reverente, confiou a eles a entrega de todos os trabalhos realizados sob o seu domínio. A celebração desta data é encerrada com uma cerimônia de apresentação e entrega individual dos trabalhos espirituais pelos seguidores da Doutrina ao superior hierárquico.
Para cumprir a pesada missão de reimplantar a Doutrina de Jesus Cristo, o Mestre Irineu teve que preparar vários seguidores. A estes delegou atribuições como fez Jesus Cristo com os apóstolos.
O fiel Leôncio Gomes da Silva, filho de Antônio Gomes da Silva, um dos primeiros companheiros do Mestre Irineu, foi um exemplo notável. Leôncio foi preparado, segundo palavras do próprio Mestre, durante vinte anos até assumir a presidência do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal.
A confiança do Mestre em Leôncio pode ser medida pela decisão que tomou ao lhe outorgar a insígnia de Mestre-imediato. Palavras do Mestre: - Leôncio, o que você fizer está feito. Ninguém desfaz. Só eu, e eu não desfaço. Eu só não lhe concedo autorização para tirar receita.
O Mestre Irineu sabia que o presidente Leôncio no futuro precisaria da força destas palavras. Quando o Mestre desencarnou, Leôncio começou a sofrer represálias dos inimigos espirituais que espreitavam Jesus Cristo desde sua primeira vinda. Estes procuraram desencadear uma crise de natureza política com o objetivo de afastá-lo do comando.
Depois de várias investidas pelo poder - que é puramente espiritual -, e pelo qual Leôncio resistiu com alguns companheiros, quis a providência abrir o processo de dissidências que se prolonga até os dias atuais. Leôncio, que havia se manifestado um discípulo aplicado, presidiu materialmente os trabalhos durante dez anos.
A irmandade o reconhece pela maestria com que executou as ordens que lhe foram passadas pelo Mestre Irineu. Em 1980, estando gravemente enfermo, Leôncio decidiu transferir a direção ao irmão Raimundo Gomes da Silva, com o compromisso de que esta lhe seria restituída depois que alcançasse cura. Porém, desencarnou no dia 17 de março daquele ano.
A passagem espiritual de Leôncio Gomes da Silva coincidiu com a celebração do festejo dedicado ao Patriarca S. José, um dos seres divinos da Doutrina de grande brilho. O carpinteiro José mereceu ser escolhido para a sagrada missão de acompanhar Maria e o menino Deus. Sobre seus ombros pesou a responsabilidade de guiar os primeiros passos de Jesus Cristo na terra.
O Mestre Irineu narra, no hinário O Cruzeiro, que José e Maria viveram honestamente dentro da soberania, o que nos faz entender que a relação deles foi puramente espiritual. Desde a infância, José foi tratado por Jesus de "amigo velho". José, o Patriarca da nação, no decorrer destes dois mil anos não recebeu o devido respeito e reconhecimento como guardião da Doutrina. O desprendimento de sua vida é marcado pelo equilíbrio e firmeza sobre a linha da justiça e lealdade a Jesus, Maria e a Deus. Portanto, o festival de S. José, que era comemorado na passagem do dia 18 para o dia 19, foi antecipado para o dia 17 dada a importância de Leôncio Gomes da Silva. Neste dia a irmandade rende homenagens a dois seres iluminados cujo valor espiritual redobrou com a missão que cumpriram durante as vindas de Jesus.
É cantado o hinário O Cruzeiro, sendo que a primeira coluna (a primeira metade do hinário) em memória do eterno presidente Leôncio Gomes da Silva. A primeira coluna é cantada sem acompanhamento de instrumentos musicais e sem a proclamação dos tradicionais vivas do ritual. A segunda, de maneira alegre e pujante, é destinada a exaltar a glória de todas as bandeiras e lutas do Patriarca S. José.
O Mestre Irineu também agendou a reunião dos seguidores na passagem da Semana Santa, precisamente na Sexta-feira da Paixão. Neste dia são cantados os hinários recebidos pelas mulheres. Para os adeptos da Doutrina, esta é uma das datas mais comoventes. O fardamento é o azul marinho e branco.
Todos procuram aumentar o entendimento sobre as alegações da humanidade em julgar e condenar Jesus Cristo ao martírio da crucificação. Na América do Sul, no Brasil, no Estado do Acre. No reino da floresta, o Mestre Irineu se estabeleceu para reviver a nova instrução cristã. Vale observar que durante os festivais os homens se fardam de terno branco, gravata preta e exibem na lapela uma estrela dourada de seis pontas, a estrela de Davi. No centro da estrela existe a representação da lua nova, a lua sobre a qual o Mestre Irineu avistou a Rainha da Floresta quando ela veio lhe entregar o poder espiritualmente.
As mulheres, ainda nos hinários festivos, fardam-se de blusa e saia pregueada brancas. Sobre a saia um saiote e sobre a blusa um talabarde, ambos de cor verde-bandeira. No ombro direito fixam fitas coloridas que descem até a barra da saia. Exibem na cabeça uma coroa bordada de lantejoulas prateadas. O majestoso fardamento das mulheres é acrescido da estrela de Davi e de uma rosa bordada com lantejoulas prateadas do lado esquerdo. A farda das moças em vez da rosa exibe uma palma prateada com uma sutil diferença na posição do talabarde.
O outro fardamento de homens e mulheres, destinado às sessões de concentração, é o seguinte: calça e saia azul-marinho, camisa e blusa brancas, gravatas pretas e a estrela. No bolso da blusa das mulheres existem as iniciais de CRF, que significa Casa da Rainha da Floresta, bordadas na mesma cor da saia. É este o fardamento utilizado durante o hinário da Semana Santa.
A escolha dos hinários das mulheres na Sexta-feira da Paixão é uma manifestação de pesar ao sofrimento de Maria e suas companheiras que estiveram ao pé da cruz pranteando a crucificação de Jesus Cristo. Neste contexto, o fardamento azul e branco compõe um verdadeiro quadro de luto na Quaresma.
Decorridos vinte e sete anos desde que tomei o Daime pela primeira vez, recebi um hinário constituído de seis hinos. Um deles, o segundo hino, recebi em 1977 durante a passagem da Quaresma. A mensagem é a seguinte, sendo que a última estrofe são palavras que me foram ditas espiritualmente pelo Mestre Irineu: "Dou viva ao Pai Eterno / E a Virgem da Conceição / Eu dou viva a Jesus Cristo / Que é o dono desta missão / Recebi esta preleção / Quem me deu foi Juramidã / Para cantar com meus irmãos / Sexta-feira da Paixão / Foi na cruz com grande dor / Que a Doutrina ele implantou / Aqui em novas terras / Novamente replantou / No ano setenta e sete / Bem pertinho de dois mil / Eu estou aqui cantando / E relembrando a Santa Cruz / Vamos todos meus irmãos / Bem zelar esta missão / Para Deus nos perdoar / A Virgem Mãe nos dar benção / Eu agora aqui repito / Estas novas instruções / Para manter minhas ordens / Conforme eu deixei aqui.
Depois da Quaresma a irmandade se prepara para os festejos de São João Batista, cujo hinário é realizado na noite de 23 para 24 de junho com o fardamento oficial, branco. Neste dia são cantados os hinários O Cruzeiro e Sois Baliza. João Batista, filho de Isabel, uma das primas de Maria, a mãe de Jesus, era um pastor de ovelhas a quem Deus confiou uma das mais brilhantes missões do cristianismo. João Batista, que já havia estado encarnado como Elias antes da vinda de Jesus Cristo, cumpriu a missão de pregar a Doutrina enquanto Jesus Cristo se preparava para se apresentar à humanidade. A luz deste apóstolo é tão brilhante que, em sua vinda à terra, chegou a ser confundido com a luz do primo Jesus. Uma das mais profundas manifestações de humildade diante de Jesus Cristo foi manifestada por João Batista quando declarou não ser digno de tirar o pó das sandálias na ocasião em que o Mestre pediu para ser batizado.
O hinário do Mestre Irineu reconstituiu todas as passagens importantes do cristianismo. Uma das narrações mais claras, no hino São João, é a respeito do batismo de Jesus Cristo: "São João era menino / Só vivia nas campinas / Pastorando as suas ovelhas / Pregando as santas doutrinas / Pregando as santas doutrinas / O amor ele empregou / Atrás dele veio Jesus / Toda verdade afirmou / Toda verdade afirmou / Gravou no coração / Ambos foram batizados / No rio de Jordão / No rio de Jordão / Ambos tiveram em pé / Um é filho de Maria / O outro é filho de Isabel / Jesus estava vestido / Com sua roupa cor de cana / Dando viva ao Pai Eterno / E viva a senhora Santana". Santana, a mãe de Maria.
As vidas de João e de Jesus, ambos com a mesma luz, estão marcadas por muitas semelhanças. É até compreensível que João tenha sido confundido com Jesus. João Batista foi preso e decapitado, a pedido de Salomé. Cristo foi enxotado pelas ruas estreitas da amargura até o calvário onde foi crucificado pela humanidade. Apesar do sofrimento, o semblante de Jesus e João se perpetuam altaneiros entre os cristãos. Quando a humanidade conhecer estes nomes de quem tanto se fala estará mais próxima da verdade. A reunião destes dois espíritos iluminados também ocorreu neste século. Juntos puderam replantar as santas doutrinas de acordo com as instruções do Terceiro Testamento.
Ao contrário do que foi registrado no passado, quando João Batista precedeu Jesus Cristo, o Mestre Irineu, Jesus, veio antes que Raimundo Gomes da Silva, João. Durante os festejos de São João Batista é comemorado o nascimento de Raimundo Gomes da Silva, ocorrido no dia 24 de junho de 1917.
Dentre os discípulos Raimundo Gomes foi o que mais se destacou em humildade e lealdade ao Mestre Irineu. É o único que recebeu um hinário, O Ramalho, com a mesma quantidade de hinos do Cruzeiro. Raimundo Gomes era um homem miúdo, de aproximadamente 1,60m, mas cuja estatura espiritual lhe assegurou forças suficientes para amealhar os mais avançados estudos sobre a Doutrina de Jesus Cristo e sobre o significado da missão do Mestre Irineu.
Raimundo nasceu em Castanhal, no Pará, e durante muitos anos foi seringueiro. Nunca freqüentou escola e não conseguia sequer assinar o nome. O hinário O Ramalho é uma das obras mais aprofundadas e esclarecedoras sobre o cristianismo. O fato de ser analfabeto não impedia que Raimundo Gomes fosse fluente na leitura na espiritualidade.
Um fato inusitado é a primeira referência que fez em um dos seus hinos sobre a cabala. Diz o Aurélio que cabala é: "1. Tratado filosófico-religioso hebraico, que pretende resumir uma religião secreta que se supõe haver coexistido com a religião popular dos hebreus. 2. O contexto desse tratado, particularmente a decifração de um sentido secreto da Bíblia e uma teoria e um simbolismo dos números e das letras." Diz o hino: "Jesus Cristo é quem nos manda / Jesus Cristo é quem nos dá / Esta divina doutrina / Do divino Soberano Pai / A Virgem Soberana Mãe / Foi quem veio resplandecer / Nos relembrando esta verdade / Do Divino Senhor Deus / Os apóstolos estão chegando / Para vir nos ajudar / Para firmar esta cabala / No mundo material". Através das revelações feitas pelo Daime, que ficaram registradas no hinário, Raimundo Gomes foi o primeiro discípulo a declarar que Raimundo Irineu Serra é Jesus Cristo.
No hino intitulado NOVAS INSTRUÇOES os espíritos de Jesus Cristo e João Batista, reencarnados nas pessoas de Raimundo Irineu Serra e Raimundo Gomes da Silva, tiveram, neste século, um diálogo bastante esclarecedor. O hino começa com as seguintes palavras do Mestre: "Eu agora aqui lhe entrego / Estas novas instruções / Você explande para todos / Se quiser ser meu irmão". O discípulo responde: "Eu de vós eu recebi / E com vós eu quero explandir / Para todos que quiser acreditar e lhe ouvir / Esta verdade é divina / É de Jesus Cristo Redentor / Foi quem veio nos ensinar / A Doutrina do Salvador / Ele veio nos ensinar / E é quem nos dá todo valor / E porque é que não se liga / Às instruções que ele ordenou / Eu convido os meus irmãos / Para nós seguir nesta Doutrina / Vamos enfrentar com coragem / Os ensinos da Mãe Divina".
Nas duas estrofes seguintes Raimundo Gomes faz a declaração sobre a espiritualidade de Raimundo Irineu Serra: "Vós sois Príncipe e vós sois Rei / E vós pode se declarar / Porque vós é Jesus Cristo / Que baixou para ensinar / Isto eu digo é porque vi / Não tenho medo de errar / Que quem vive neste mundo / Não tem segredo a guardar". Em quase todo o hinário de Raimundo Gomes da Silva os espíritos de Jesus Cristo e João Batista dialogam sobre a Doutrina. Num desses hinos, TREZENTOS PEDAÇOS, os dois tiveram outro diálogo. Quando recebeu este hino, Raimundo Gomes perguntou: - Mestre, o que são os trezentos pedaços?
- Isto são trezentas porqueiras, respondeu Irineu Serra.
Mas a tradução mais precisa está contida na conversa que tiveram e nos ficou registrada no hino. Na primeira estrofe Raimundo Gomes diz: "Eu tenho trezentos pedaços / Aqui para mostrar / O que houver dentro do serviço / Ninguém vá se admirar". O Mestre responde: "Tudo enquanto eu digo / Ninguém quer acreditar / Agora perante a todos / Os espíritos vão falar". E prossegue o Mestre: "Se eu quiser ir eu vou / Se eu não for posso mandar / Tem pessoa suficiente / Para o que eu determinar". Raimundo Gomes responde: "Eu me uno aqui com todos / Me uno mais com a sua pessoa / Que aqui dentro do serviço / É quem me traz as coisas boas". O Mestre reclama: "Já fazem meio século / Que eu trabalho dentro da luz / Quase vou assassinado / Como assassinaram Jesus". E o discípulo consola: "Os estudos que vós tem / Que o Divino Pai lhe dá / Os mesmos assassinos / Não podem lhe assassinar".
E completa: "Que Deus é soberano / Aqui na terra e no astral / Eu confio na Virgem Mãe / Que a si ninguém faz mal". Raimundo Gomes continua reverente: "Eu vivo trabalhando / Para dar o seu valor / Peço que vós me coloque / No jardim de belas flores". E o Mestre conclui: "Siga estes ensinos / Aqui no meu domínio / Você já está bem colocado / Dentro do poder divino".
A vinda de Jesus Cristo continua sendo esperada quase todos os dias por muitos. No dia 29 de outubro de 1992 cerca de vinte mil coreanos ocuparam duzentos templos para esperar a chegada de Jesus e o fim do mundo. Ao som de hinos e saudações de aleluia transmitidos por alto-falantes, centenas de coreanos aguardaram a chegada de anjos que os levariam para o céu. Por causa disso, milhares de fiéis venderam suas propriedades, abandonaram suas famílias, escolas e empregos ou desertaram de seus postos militares. Algumas mulheres fizeram abortos e pelo menos quatro pessoas se suicidaram. Uma mulher, perguntada por um jornalista sobre o que faria caso os anjos não aparecessem, respondeu que esse tipo de pergunta não deveria ser feita.
Quando Jesus veio pela primeira vez, para remir e salvar, os judeus o aguardavam em seu meio. Mas quis Deus que Jesus, de linhagem judia, nascesse numa manjedoura sob os cuidados de um casal pobre materialmente. Até hoje o Messias ainda é esperado e a vinda de Jesus Cristo contestada pelos judeus. Não é surpreendente que Jesus tenha voltado na forma de um homem comum, negro e semi-analfabeto. Sobre isto o discípulo Raimundo Gomes da Silva disse em um dos seus hinos: "Ninguém espere por Jesus Cristo / Que ele venha espiritual / Aqui na terra ele está / Para aqueles que procurar".
Noutro hino, DEUS TODO-PODEROSO, o mesmo discípulo afirma: "Deus, todo-poderoso / Aqui na terra está conosco / Nos mostrando esta divina luz / E o vosso poder / De Jesus Cristo Redentor / Vamos todos meus irmãos / Trabalhar para conhecer este cristão / Que vive no mundo lutando / Para todos receber as instruções". O seringueiro Raimundo Gomes da Silva, que conhecia os mistérios da cabala, foi um exemplo vivo de humildade e convicção da missão que Deus lhe destinou para cumprir junto com Raimundo Irineu Serra. De vida desprendida, a grande lição que nos deixou foi a da humildade diante do próximo e do poder de Deus. "Nós devemos ser só o que nós somos", costumava dizer, citando um dos hinos que recebeu.
No dia 27 de julho de 1986, aos 69 anos, Raimundo Gomes desencarnou nos deixando o sentimento, de acordo com um de seus hinos, de que neste mundo não teve valor, mas que adiante terá. "Sigo sempre o meu destino / Falando o meu idioma / Só não falo português / Porque o povo anda na ronda". O hinário de Raimundo Gomes foi encerrado com o hino VOU COM VÓS, ESTOU COM DEUS: "Meu Mestre me chamou / Para mim seguir com ele / Eu alegre respondi / Vou com vós, estou com Deus / Minha Mãe, minha rainha / A vós eu vou pedir / Na minha separação / Eu com vós quero seguir / Teu lugar está preparado / Foi tu quem preparou / Nos pés do Santo Cruzeiro / Do teu Mestre ensinador". O corpo de Raimundo Gomes da Silva foi enterrado ao pé do Cruzeiro existente na entrada do templo do Alto Santo.
O Mestre Irineu viveu como um homem comum e na juventude gostou de participar de festas nos seringais e colônias. O compromisso assumido com a Doutrina não lhe impediu de cometer erros durante a vida como qualquer mortal. No entanto, a obstinação em corrigí-los tornou a vida do homem Irineu uma fonte de constante inspiração para os seus seguidores. Vários exemplos poderiam ser citados sobre a incessante evolução do caráter do Mestre.
Um destes exemplos ocorreu quando já estava com mais de 40 anos de idade. Ele próprio contava que certo dia saiu do Alto Santo e foi até a cidade, Rio Branco, que costumava visitar poucas vezes durante o ano. Numa dessas ocasiões alguém lhe perguntou se sabia ler e ele respondeu que sim. Caiu em reflexão a respeito da resposta e concluiu que não havia dito a verdade. Decidiu aprender a ler e a escrever. Tornou-se então ávido leitor das obras do Círculo Esotérico Comunhão do Pensamento.
Outro exemplo bastante significativo da personalidade de Irineu Serra foi quando o então governador do Território Federal do Acre, José Guiomar dos Santos, que costumava passar os finais de semana na casa do Mestre, sugeriu ao amigo a concessão de uma aposentadoria como veterano. Este título teria permitido que Irineu tivesse levado uma vida com maior comodidade. Porém, a proposta foi prontamente recusada. Irineu argumentou que não era veterano porque ao chegar ao Acre a Revolução Acreana já havia ocorrido. Gestos como estes fizeram com que o coronel Guiomar dos Santos redobrasse a admiração pelo Mestre.
Irineu casou no dia 15 de setembro de 1956, aos 64 anos de idade, com Peregrina Gomes Serra, filha de Zulmira Gomes da Silva. Peregrina, neta de Antônio Gomes da Silva, o pai de Leôncio e Raimundo Gomes da Silva, estava com 19 anos de idade. Este encontro não representou propriamente um casamento material, mas foi a celebração espiritual de um compromisso que remonta ao princípio da Doutrina, quando ela o guiou como mãe. Como companheira, Peregrina foi preparada para continuar o zelo pelos princípios da Doutrina a partir do instante em que o Mestre se ausentasse.
Vale notar que quando o Mestre veio como Jesus Cristo a humanidade estava muito embrutecida, mas da segunda vez a mesma humanidade deu um sinal de aprimoramento. O Mestre Irineu pôde despedir-se, no dia 6 de julho de 1971, no conforto de uma casa ao lado de familiares, discípulos e amigos. A importância de Mestre Irineu chegou a ser reconhecida pelo próprio Estado. O então governador Francisco Wanderley Dantas e comitiva estiveram nos funerais com a banda de música da Polícia Militar. O governador decretou luto oficial durante três dias e o sepultamento foi feito com honras militares. O corpo dele foi guardado em uma urna, precisamente no local previamente escolhido pelo próprio Mestre: ao lado direito da estrada Custódio Freire que leva ao Alto Santo. Neste local, a irmandade construiu uma singela capela onde passou a celebrar as missas.
O Mestre Irineu organizou um ritual para a celebração das missas e corrigiu orações como o Pai Nosso que ele havia ensinado como Jesus Cristo à humanidade, mas que foi alterado pelos diversos grupos religiosos que se proclamaram proprietários da palavra de Deus depois da crucificação. O Mestre fez uma sutil, mas profunda correção no PAI NOSSO, AVE MARIA E SALVE RAINHA.
E para que todos conhecessem e compreendessem comentou o PAI NOSSO da seguinte maneira: PAI NOSSO QUE ESTAIS NO CÉU (porque está em Espírito Santo) SANTIFICADO SEJA VOSSO NOME (porque é o nome de toda elevação e de todo poder eterno) VAMOS NÓS AO VOSSO REINO (porque o reino é divino e assim como viemos, vamos ao trono do nosso querido Pai) ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU (porque se bem ou mal eu fizer, no céu estará escrito para um dia quando lá chegar encontrar meus bons feitos ou maus feitos) O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DAI HOJE (porque o pão é o alimento, conforto e a vida que o Divino Pai derrama sobre todos os vossos filhos e resplandece a luz em raios do vosso divino mistério, fios dourados e cristais sobre a terra) PERDOAI AS NOSSAS DÍVIDAS ASSIM COMO NÓS PERDOAMOS AOS NOSSOS DEVEDORES (porque se eu perdoar o meu próximo de bom coração, também peço e rogo ao meu Soberano Pai que perdoe as minhas culpas ofendidas a vós) NÃO NOS DEIXE CAIR EM TENTAÇÕES (as tentações são provocadas no meu coração contra o meu próximo ou no coração do meu próximo contra mim) DEFENDEI-ME SENHOR DE TODO MAL (porque todo mau é mau e meu Pai defendendo-me sou feliz).
A oração AVE MARIA foi comentada por Mestre Irineu assim: AVE MARIA CHEIA DE GRAÇA (porque Ela foi a árvore que deu fruto - a luz do graciosíssimo filho que é Jesus - e é cheia de graças e misericórdias e das virtudes de Deus amante) O SENHOR É CONVOSCO (porque Ela vive a reinar no trono de Deus amante com o vosso Eterno Filho bendito) BENDITA SOIS VÓS ENTRE AS MULHERES ( porque Ela foi a mulher mais ditosa e divina e entre todas as outras só Ela) BENDITO É O FRUTO DO VOSSO VENTRE JESUS (porque Ela foi virgem antes, durante e depois do vosso parto, como uma fruteira que dá um fruto e fica virgem - assim é a Virgem Maria). E a SANTA MARIA: SANTA MARIA MÃE DE DEUS, ROGAI A DEUS POR NÓS PECADORES, AGORA E NA HORA DE NOSSA MORTE AMÉM, JESUS, MARIA E JOSÉ (porque nesta e na outra vida Ela roga para sempre a Deus pelos vossos filhos, amém, Jesus , Maria e José). Segue o comentário da oração SALVE RAINHA: DEUS VOS SALVE RAINHA (porque Vós estais salva e trabalha com os vossos divinos rogos merecedores a Deus pelos vossos filhos) MÃE DE MISERICÓRDIA (porque foi Vós a única virgem entre todas as outras que teve o poder de dar a luz ao Eterno Filho sobre o qual Deus derramou toda misericórdia e confiança em Vós e no vosso Eterno Filho) VIDA DOÇURA (porque Vós vive a reinar no trono eterno que é o trono de Deus e Deus é toda doçura) ESPERANÇAS NOSSAS (porque as esperanças são as vossas divinas bênçãos, que todos nós esperamos que Vós derrame entre todos os vossos filhos) SALVE (porque saudamos a Vós com preces, obras e boas palavras) A VÓS BRADAMOS (bradamos sim, porque pedimos o perdão dos nossos crimes cometidos a Vós) OS DEGREDADOS FILHOS DE EVA (porque vivemos no mundo do degredo e somos os filhos de Eva) A VÓS SUSPIRAMOS, GEMENDO E CHORANDO (porque pedimos, rogamos e choramos para ir à nossa advogada para que Ela, como Mãe Salvadora, advogue as nossas culpas ofendidas a Vós) NESTE VALE DE LÁGRIMAS (porque é no mundo que expiamos nossos carmas) E APÓS ADVOGADA NOSSA OS VOSSOS OLHOS MISERICORDIOSOS (porque neles Deus lançou as suas misericórdias em Vós como Mãe para olhar para todos os vossos filhos) A NÓS VOLVEIS (porque vamos nos ver) E DEPOIS ESTE DESTERRO (veremos a Jesus) NOS MOSTRAI JESUS, BENDITO É O FRUTO DO VOSSO VENTRE (porque de Vós Ele nasceu, virgem Vós era e virgem Vós ficou) Ó CLEMENTE (porque Ele é para sempre) Ó PIEDOSA (porque Vós é a Virgem de toda piedade e é a Virgem Imaculada Mãe) Ó DOCE (porque a sempre Virgem Maria é toda doçura) SEMPRE VIRGEM MARIA, ROGAI A DEUS POR NÓS SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS, PARA QUE SEJAMOS DIGNOS DE ALCANÇAR AS PROMESSAS DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, SENHOR NOSSO AMÉM, JESUS, MARIA E JOSÉ.
A abertura do ritual da missa é a oração de um terço completo, seguido do canto de dez hinos, cada um deles intercalado por uma prece. As missas são celebradas no sétimo e trigésimo dia e durante o aniversário anual de falecimento de pessoas da irmandade e em ação de graça. Uma das missas celebradas anualmente, no dia 6 de julho, é a de aniversário de falecimento do Mestre Irineu. Depois da missa os fiéis cantam o hinário O Cruzeiro sem acompanhamento de instrumentos musicais.
Desde a ausência material do Mestre Irineu, dona Peregrina começou a dividir a direção da sessão. Num primeiro instante, com o tio Leôncio e depois com o tio Raimundo. Atualmente, com o título de dignitária, dirige sozinha os trabalhos da Doutrina no centro. A missão de dona Peregrina tem sido desempenhada com bastante sacrifício porque a ausência do Mestre motivou o surgimento de pessoas e grupos querendo sucedê-lo constantemente.
Uma das conseqüências mais graves disto foi a notoriedade, mas que está repleta de equívocos, que a Doutrina do Santo Daime ganhou no Brasil e até mesmo no exterior. Quando o Mestre Irineu se ausentou várias pessoas, que se declaravam seguidores, fundaram novos centros. Os equívocos dos que se afastaram com o objetivo de sucedê-lo teve como conseqüência mais grave a comparação da bebida com droga. Alguns dos dissidentes incluíram nos rituais que formaram outros veículos que não foram adotados pelo fundador da Doutrina.
A viúva tem conseguido manter a cautelosa distância destes dissidentes porque nunca foi pretensão do Mestre Irineu evangelizar a humanidade. Tanto assim que não criou filiais do centro e manteve o princípio de que não se pode convidar pessoas para experimentar o Daime. Numa das últimas conversas do Mestre com o discípulo Raimundo Gomes da Silva, presenciada por várias pessoas, estes ouviram a advertência:
- Ninguém queira ser chefe. O dono daqui sou eu. Quando eu me ausentar, reúnam, tomem o Daime e me chamem que eu venho. O dono daqui sou eu, repetia enquanto reforçava cada palavra com batidas do bastão no assoalho.
Nos últimos anos, desde que o Mestre se ausentou materialmente, conseguir cumprir estas palavras tem sido o maior desafio dos seguidores da Doutrina no Alto Santo - aqueles que acompanham a liderança de Peregrina Gomes Serra. Ela cultiva um hinário, atualmente com dez hinos, que costuma ser cantado depois do encerramento da segunda coluna do Cruzeiro - mas no momento que antecede o canto dos hinos novos (a coleção dos doze últimos hinos recebidos por Mestre Irineu que são cantados no encerramento das sessões de concentração e dos demais hinários). O hinário de dona Peregrina Serra exorta os seguidores a terem devoção com a Doutrina e a refletirem sobre o comportamento. "Meu Mestre está aqui/ É para ensinar / Quem não prestar atenção / É melhor se retirar", costuma repetir dona Peregrina, citando trecho de um dos hinos que recebeu. Um dos festivais, no dia 14 de julho, é consagrado ao aniversário da dignitária Peregrina Gomes Serra, quando é cantado O Cruzeiro.
Para os dois primeiros dias de novembro o Mestre Irineu incluiu no calendário do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal - Alto Santo as tradicionais reverências celebradas no mundo em memória de Todos os Santos e Finados. Assim, o Mestre, que decidiu homenagear os Reis do Oriente, São José e São João, enaltece indistintamente a glória e a luz das demais categorias de santos. É costume cantar, na passagem do dia de Todos os Santos e Finados, os hinários dos irmãos mais antigos e todos já falecidos, entre os quais destacam-se João Pereira, Germano Guilherme, Antônio Gomes e Maria Damião. Depois a irmandade realiza uma romaria até o cemitério existente no Alto Santo onde é celebrada uma missa ao amanhecer.
O calendário cristão tradicional e a comemoração de outras datas no centro são insuficientes para que todos os hinários recebidos pelos discípulos possam ser cantados com freqüência. A alternativa encontrada por dona Peregrina, para cultivar as mensagens e os ensinos contidos nestes hinários, foi a de agendá-los para serem cantados durante velórios e aniversários na irmandade.
Aqui dou por concluído o meu modesto relato, que está aqui nestas páginas sendo publicado, tendo como base os estudos que me foram revelados pela luz do Daime, que é o próprio Mestre Irineu. Uma parte destes estudos consegui anotá-los aqui de forma honesta e despretensiosa com o esforço da memória. Tentei reconstituí-los com isenção e síntese porque se me alongasse no assunto acredito que poderia escrever centenas de livros.
Nestas linhas está somente aquilo que Deus me permitiu publicar sem diminuir ou elevar e muito menos convencer quem quer que seja. Quem desejar encontrar a verdade como meus irmãos e eu conhecemos é preciso procurar. Existe a verdade de Deus e a verdade de cada um.
- Deus existe e domina tudo que você está vendo.
As palavras do sonho que tive na infância ainda reverberam no meu ser. A força delas me levou pelo mundo à procura de conhecer a mim e aos meus irmãos. Na passagem do Centenário de Raimundo Irineu Serra, julgo a importância deste trabalho pela possibilidade de manter a mim e a meus irmãos vivos na memória do nosso Pai.
Buda retirou-se da opulência dos palácios e refugiou-se na simplicidade de homem comum para cumprir seu ministério. Jesus Cristo nasceu numa manjedoura e também teve vida simples. Aqui testemunhamos que Buda, Jesus Cristo e o Mestre Irineu conseguiram perpetuar a grandeza espiritual através do amor.
O Cruzeiro com dois braços criado pelo Mestre Irineu é o símbolo mais representativo da Doutrina porque registra as duas sagradas visitas que nos fez Jesus Cristo. No hino MEU Cruzeiro, recebido por uma de minhas irmãs, Zizi, minha esposa, está a explicação: "Meu Cruzeiro está de pé / Ele é a Santa Cruz / O primeiro é Jesus / Que veio nos dar a santa luz / O segundo é Jesus / Que voltou para ensinar / Trazendo novos mistérios / Para todos relembrar / Vamos todos compreender / Para poder entender / De onde vem o poder / A santa luz resplandecer / Maria ao pé da cruz / Em lamentos pede a Jesus / Perdão para os vossos filhos / Receber a santa luz". Para encerrar, reproduzo o hino PISEI NA TERRA FRIA que foi o último recebido pelo Mestre Irineu:
PISEI NA TERRA FRIA
A MINHA MÃE QUE NOS CRIOU
DO SANGUE DAS MINHAS VEIAS
MEU CORPO NA SEPULTURA
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